AO EPISCOPADO, AO CLERO, ÀS PESSOAS
CONSAGRADAS E AOS FIÉIS LEIGOS
SOBRE O ANÚNCIO DO EVANGELHO NO
MUNDO ATUAL - Evangelii Gaudium
1. A ALEGRIA DO EVANGELHO enche o
coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam
salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do
isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria. Quero, com esta
Exortação, dirigir-me aos fiéis cristãos a fim de os convidar para uma nova
etapa evangelizadora marcada por esta alegria e indicar caminhos para o
percurso da Igreja nos próximos anos.
1. Alegria que se renova e
comunica
2. O grande risco do mundo atual,
com sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza
individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada
de prazeres superficiais, da consciência isolada. Quando a vida interior se
fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não
entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria
do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem. Este é um risco, certo e
permanente, que correm também os crentes. Muitos caem nele, transformando-se em
pessoas ressentidas, queixosas, sem vida. Esta não é a escolha duma vida digna
e plena, este não é o desígnio que Deus tem para nós, esta não é a vida no
Espírito que jorra do coração de Cristo ressuscitado.
3. Convido todo o cristão, em
qualquer lugar e situação que se encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro
pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar
encontrar por Ele, de O procurar dia a dia sem cessar. Não há motivo para
alguém poder pensar que este convite não lhe diz respeito, já que «da alegria
trazida pelo Senhor ninguém é excluído». Quem arrisca, o Senhor não o desilude;
e, quando alguém dá um pequeno passo em direção a Jesus, descobre que Ele já
aguardava de braços abertos a sua chegada. Este é o momento para dizer a Jesus
Cristo: «Senhor, deixei-me enganar, de mil maneiras fugi do vosso amor, mas
aqui estou novamente para renovar a minha aliança convosco. Preciso de Vós.
Resgatai-me de novo, Senhor; aceitai-me mais uma vez nos vossos braços
redentores». Como nos faz bem voltar para Ele, quando nos perdemos! Insisto uma
vez mais: Deus nunca Se cansa de perdoar, somos nós que nos cansamos de pedir a
sua misericórdia. Aquele que nos convidou a perdoar «setenta vezes sete» (Mt
18, 22) dá-nos o exemplo: Ele perdoa setenta vezes sete. Volta uma vez e outra
a carregar-nos aos seus ombros. Ninguém nos pode tirar a dignidade que este
amor infinito e inabalável nos confere. Ele permite-nos levantar a cabeça e
recomeçar, com uma ternura que nunca nos defrauda e sempre nos pode restituir a
alegria. Não fujamos da ressurreição de Jesus; nunca nos demos por mortos,
suceda o que suceder. Que nada possa mais do que a sua vida que nos impele para
diante!
4. Os livros do Antigo Testamento
preanunciaram a alegria da salvação, que havia de tornar-se superabundante nos
tempos messiânicos. O profeta Isaías dirige-se ao Messias esperado, saudando-O
com regozijo: «Multiplicaste a alegria, aumentaste o júbilo» (9, 2). E anima os
habitantes de Sião a recebê-Lo com cânticos: «Exultai de alegria!» (12, 6). A
quem já O avistara no horizonte, o profeta convida-o a tornar-se mensageiro
para os outros: «Sobe a um alto monte, arauto de Sião! Grita com voz forte,
arauto de Jerusalém» (40, 9). A criação inteira participa nesta alegria da
salvação: «Cantai, ó céus! Exulta de alegria, ó terra! Rompei em exclamações, ó
montes! Na verdade, o Senhor consola o seu povo e se compadece dos
desamparados» (49, 13).
Zacarias, vendo o dia do Senhor,
convida a vitoriar o Rei que chega «humilde, montado num jumento»: «Exulta de
alegria, filha de Sião! Solta gritos de júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o
teu rei vem a ti. Ele é justo e vitorioso» (9, 9). Mas o convite mais tocante
talvez seja o do profeta Sofonias, que nos mostra o próprio Deus como um centro
irradiante de festa e de alegria, que quer comunicar ao seu povo este júbilo
salvífico. Enche-me de vida reler este texto: «O Senhor, teu Deus, está no meio
de ti como poderoso salvador! Ele exulta de alegria por tua causa, pelo seu
amor te renovará. Ele dança e grita de alegria por tua causa» (3, 17).É a
alegria que se vive no meio das pequenas coisas da vida quotidiana, como
resposta ao amoroso convite de Deus nosso Pai: «Meu filho, se tens com quê,
trata-te bem (...). Não te prives da felicidade presente» (Sir 14, 11.14).
Quanta ternura paterna se vislumbra por detrás destas palavras!
5. O Evangelho, onde resplandece
gloriosa a Cruz de Cristo, convida insistentemente à alegria. Apenas alguns
exemplos: «Alegra-te» é a saudação do anjo a Maria (Lc 1, 28). A visita de
Maria a Isabel faz com que João salte de alegria no ventre de sua mãe (cf. Lc
1, 41). No seu cântico, Maria proclama: «O meu espírito se alegra em Deus, meu
Salvador» (Lc 1, 47). E, quando Jesus começa o seu ministério, João exclama:
«Esta é a minha alegria! E tornou-se completa!» (Jo 3, 29). O próprio Jesus
«estremeceu de alegria sob a ação do Espírito Santo» (Lc 10, 21). A sua
mensagem é fonte de alegria: «Manifestei-vos estas coisas, para que esteja em
vós a minha alegria, e a vossa alegria seja completa» (Jo 15, 11). A nossa
alegria cristã brota da fonte do seu coração transbordante. Ele promete aos
seus discípulos: «Vós haveis de estar tristes, mas a vossa tristeza há-de
converter-se em alegria» (Jo 16, 20). E insiste: «Eu hei-de ver-vos de novo!
Então, o vosso coração há-de alegrar-se e ninguém vos poderá tirar a vossa
alegria» (Jo 16, 22). Depois, ao verem-No ressuscitado, «encheram-se de
alegria» (Jo 20, 20). O livro dos Atos dos Apóstolos conta que, na primitiva
comunidade, «tomavam o alimento com alegria» (2, 46). Por onde passaram os
discípulos, «houve grande alegria» (8, 8); e eles, no meio da perseguição,
«estavam cheios de alegria» (13, 52). Um eunuco, recém-batizado, «seguiu o seu
caminho cheio de alegria» (8, 39); e o carcereiro «entregou-se, com a família,
à alegria de ter acreditado em Deus» (16, 34). Porque não havemos de entrar,
também nós, nesta torrente de alegria?
6. Há cristãos que parecem ter
escolhido viver uma Quaresma sem Páscoa. Reconheço, porém, que a alegria não se
vive da mesma maneira em todas as etapas e circunstâncias da vida, por vezes
muito duras. Adapta-se e transforma-se, mas sempre permanece pelo menos como um
feixe de luz que nasce da certeza pessoal de, não obstante o contrário, sermos
infinitamente amados. Compreendo as pessoas que se vergam à tristeza por causa
das graves dificuldades que têm de suportar, mas aos poucos é preciso permitir
que a alegria da fé comece a despertar, como uma secreta mas firme confiança,
mesmo no meio das piores angústias: «A paz foi desterrada da minha alma, já nem
sei o que é a felicidade (…). Isto, porém, guardo no meu coração; por isso,
mantenho a esperança. É que a misericórdia do Senhor não acaba, não se esgota a
sua compaixão. Cada manhã ela se renova; é grande a tua fidelidade. (...) Bom é
esperar em silêncio a salvação do Senhor» (Lm 3, 17.21-23.26).
7. A tentação apresenta-se,
frequentemente, sob forma de desculpas e queixas, como se tivesse de haver
inúmeras condições para ser possível a alegria. Habitualmente isto acontece,
porque «a sociedade técnica teve a possibilidade de multiplicar as ocasiões de
prazer; no entanto ela encontra dificuldades grandes no engendrar também a
alegria». Posso dizer que as alegrias mais belas e espontâneas, que vi ao longo
da minha vida, são as alegrias de pessoas muito pobres que têm pouco a que se
agarrar. Recordo também a alegria genuína daqueles que, mesmo no meio de
grandes compromissos profissionais, souberam conservar um coração crente,
generoso e simples. De várias maneiras, estas alegrias bebem na fonte do amor
maior, que é o de Deus, a nós manifestado em Jesus Cristo. Não me cansarei de
repetir estas palavras de Bento XVI que nos levam ao centro do Evangelho: «Ao
início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o
encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte
e, desta forma, o rumo decisivo».
8. Somente graças a este encontro
– ou reencontro – com o amor de Deus, que se converte em amizade feliz, é que
somos resgatados da nossa consciência isolada e da auto-referencialidade.
Chegamos a ser plenamente humanos, quando somos mais do que humanos, quando
permitimos a Deus que nos conduza para além de nós mesmos a fim de alcançarmos
o nosso ser mais verdadeiro. Aqui está a fonte da ação evangelizadora. Porque,
se alguém acolheu este amor que lhe devolve o sentido da vida, como é que pode
conter o desejo de o comunicar aos outros?
2. A doce e reconfortante alegria
de evangelizar
9. O bem tende sempre a
comunicar-se. Toda a experiência autêntica de verdade e de beleza procura, por
si mesma, a sua expansão; e qualquer pessoa que viva uma libertação profunda
adquire maior sensibilidade face às necessidades dos outros. E, uma vez
comunicado, o bem radica-se e desenvolve-se. Por isso, quem deseja viver com
dignidade e em plenitude, não tem outro caminho senão reconhecer o outro e
buscar o seu bem. Assim, não nos deveriam surpreender frases de São Paulo como
estas: «O amor de Cristo nos absorve completamente» (2 Cor 5, 14); «ai de mim,
se eu não evangelizar!» (1 Cor 9, 16).
10. A proposta é viver a um nível
superior, mas não com menor intensidade: «Na doação, a vida se fortalece; e se
enfraquece no comodismo e no isolamento. De facto, os que mais desfrutam da
vida são os que deixam a segurança da margem e se apaixonam pela missão de comunicar
a vida aos demais». Quando a Igreja faz apelo ao compromisso evangelizador, não
faz mais do que indicar aos cristãos o verdadeiro dinamismo da realização
pessoal: «Aqui descobrimos outra profunda lei da realidade: “A vida se alcança
e amadurece à medida que é entregue para dar vida aos outros”. Isto é,
definitivamente, a missão». Consequentemente, um evangelizador não deveria ter
constantemente uma cara de funeral. Recuperemos e aumentemos o fervor de
espírito, «a suave e reconfortante alegria de evangelizar, mesmo quando for
preciso semear com lágrimas! (...) E que o mundo do nosso tempo, que procura
ora na angústia ora com esperança, possa receber a Boa Nova dos lábios, não de
evangelizadores tristes e descoroçoados, impacientes ou ansiosos, mas sim de
ministros do Evangelho cuja vida irradie fervor, pois foram quem recebeu
primeiro em si a alegria de Cristo».
Uma eterna novidade
11. Um anúncio renovado
proporciona aos crentes, mesmo tíbios ou não praticantes, uma nova alegria na
fé e uma fecundidade evangelizadora. Na realidade, o seu centro e a sua
essência são sempre o mesmo: o Deus que manifestou o seu amor imenso em Cristo
morto e ressuscitado. Ele torna os seus fiéis sempre novos; ainda que sejam
idosos, «renovam as suas forças. Têm asas como a águia, correm sem se cansar,
marcham sem desfalecer» (Is 40, 31). Cristo é a «Boa-Nova de valor eterno» (Ap
14, 6), sendo «o mesmo ontem, hoje e pelos séculos» (Heb 13, 8), mas a sua
riqueza e a sua beleza são inesgotáveis. Ele é sempre jovem, e fonte de
constante novidade. A Igreja não cessa de se maravilhar com a «profundidade de
riqueza, de sabedoria e de ciência de Deus» (Rm 11, 33). São João da Cruz
dizia: «Esta espessura de sabedoria e ciência de Deus é tão profunda e imensa,
que, por mais que a alma saiba dela, sempre pode penetrá-la mais
profundamente». Ou ainda, como afirmava Santo Ireneu: «Na sua vinda, [Cristo]
trouxe consigo toda a novidade». Com a sua novidade, Ele pode sempre renovar a
nossa vida e a nossa comunidade, e a proposta cristã, ainda que atravesse
períodos obscuros e fraquezas eclesiais, nunca envelhece. Jesus Cristo pode
romper também os esquemas enfadonhos em que pretendemos aprisioná-Lo, e
surpreende-nos com a sua constante criatividade divina. Sempre que procuramos
voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho, despontam novas
estradas, métodos criativos, outras formas de expressão, sinais mais
eloquentes, palavras cheias de renovado significado para o mundo atual. Na
realidade, toda a ação evangelizadora autêntica é sempre «nova».
12. Embora esta missão nos exija
uma entrega generosa, seria um erro considerá-la como uma heróica tarefa
pessoal, dado que ela é, primariamente e acima de tudo o que possamos sondar e
compreender, obra de Deus. Jesus é «o primeiro e o maior evangelizador». Em
qualquer forma de evangelização, o primado é sempre de Deus, que quis
chamar-nos para cooperar com Ele e impelir-nos com a força do seu Espírito. A
verdadeira novidade é aquela que o próprio Deus misteriosamente quer produzir,
aquela que Ele inspira, aquela que Ele provoca, aquela que Ele orienta e
acompanha de mil e uma maneiras. Em toda a vida da Igreja, deve-se sempre
manifestar que a iniciativa pertence a Deus, «porque Ele nos amou primeiro» (1
Jo 4, 19) e é «só Deus que faz crescer» (1 Cor 3, 7). Esta convicção
permite-nos manter a alegria no meio duma tarefa tão exigente e desafiadora que
ocupa inteiramente a nossa vida. Pede-nos tudo, mas ao mesmo tempo dá-nos tudo.
13. E também não deveremos
entender a novidade desta missão como um desenraizamento, como um esquecimento
da história viva que nos acolhe e impele para diante. A memória é uma dimensão
da nossa fé, que, por analogia com a memória de Israel, poderíamos chamar
«deuteronómica». Jesus deixa-nos a Eucaristia como memória quotidiana da
Igreja, que nos introduz cada vez mais na Páscoa (cf. Lc 22, 19). A alegria
evangelizadora refulge sempre sobre o horizonte da memória agradecida: é uma
graça que precisamos de pedir. Os Apóstolos nunca mais esqueceram o momento em
que Jesus lhes tocou o coração: «Eram as quatro horas da tarde» (Jo 1, 39). A
memória faz-nos presente, juntamente com Jesus, uma verdadeira «nuvem de
testemunhas» (Heb 12, 1). De entre elas, distinguem-se algumas pessoas que
incidiram de maneira especial para fazer germinar a nossa alegria crente:
«Recordai-vos dos vossos guias, que vos pregaram a palavra de Deus» (Heb 13,
7). Às vezes, trata-se de pessoas simples e próximas de nós, que nos iniciaram
na vida da fé: «Trago à memória a tua fé sem fingimento, que se encontrava já
na tua avó Lóide e na tua mãe Eunice» (2 Tm 1, 5). O crente é,
fundamentalmente, «uma pessoa que faz memória».
3. A nova evangelização para a
transmissão da fé
14. À escuta do Espírito, que nos
ajuda a reconhecer comunitariamente os sinais dos tempos, celebrou-se de 7 a 28
de Outubro de 2012 a XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos,
sobre o tema A nova evangelização para a transmissão da fé cristã. Lá foi
recordado que a nova evangelização interpela a todos, realizando-se fundamentalmente
em três âmbitos. Em primeiro lugar, mencionamos o âmbito da pastoral ordinária,
«animada pelo fogo do Espírito a fim de incendiar os corações dos fiéis que
frequentam regularmente a comunidade, reunindo-se no dia do Senhor, para se
alimentarem da sua Palavra e do Pão de vida eterna». Devem ser incluídos também
neste âmbito os fiéis que conservam uma fé católica intensa e sincera,
exprimindo-a de diversos modos, embora não participem frequentemente no culto.
Esta pastoral está orientada para o crescimento dos crentes, a fim de
corresponderem cada vez melhor e com toda a sua vida ao amor de Deus.
Em segundo lugar, lembramos o
âmbito das «pessoas batizados que, porém, não vivem as exigências do Baptismo»,
não sentem uma pertença cordial à Igreja e já não experimentam a consolação da
fé. Mãe sempre solícita, a Igreja esforça-se para que elas vivam uma conversão
que lhes restitua a alegria da fé e o desejo de se comprometerem com o
Evangelho.
Por fim, frisamos que a
evangelização está essencialmente relacionada com a proclamação do Evangelho
àqueles que não conhecem Jesus Cristo ou que sempre O recusaram. Muitos deles
buscam secretamente a Deus, movidos pela nostalgia do seu rosto, mesmo em
países de antiga tradição cristã. Todos têm o direito de receber o Evangelho.
Os cristãos têm o dever de o anunciar, sem excluir ninguém, e não como quem
impõe uma nova obrigação, mas como quem partilha uma alegria, indica um
horizonte estupendo, oferece um banquete apetecível. A Igreja não cresce por
proselitismo, mas «por atração».
15. João Paulo II convidou-nos a
reconhecer que «não se pode perder a tensão para o anúncio» àqueles que estão
longe de Cristo, «porque esta é a tarefa primária da Igreja». A atividade
missionária «ainda hoje representa o máximo desafio para a Igreja» e «a causa
missionária deve ser (…) a primeira de todas as causas». Que sucederia se
tomássemos realmente a sério estas palavras? Simplesmente reconheceríamos que a
ação missionária é o paradigma de toda a obra da Igreja. Nesta linha, os Bispos
latino-americanos afirmaram que «não podemos ficar tranquilos, em espera
passiva, em nossos templos», sendo necessário passar «de uma pastoral de mera
conservação para uma pastoral decididamente missionária». Esta tarefa continua
a ser a fonte das maiores alegrias para a Igreja: «Haverá mais alegria no Céu
por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não
necessitam de conversão» (Lc 15, 7).
A proposta desta Exortação e seus
contornos
16. Com prazer, aceitei o convite
dos Padres sinodais para redigir esta Exortação. Para o efeito, recolho a
riqueza dos trabalhos do Sínodo; consultei também várias pessoas e pretendo,
além disso, exprimir as preocupações que me movem neste momento concreto da
obra evangelizadora da Igreja. Os temas relacionados com a evangelização no
mundo atual, que se poderiam desenvolver aqui, são inumeráveis. Mas renunciei a
tratar detalhadamente esta multiplicidade de questões que devem ser objeto de
estudo e aprofundamento cuidadoso. Penso, aliás, que não se deve esperar do
magistério papal uma palavra definitiva ou completa sobre todas as questões que
dizem respeito à Igreja e ao mundo. Não convém que o Papa substitua os
episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas que sobressaem
nos seus territórios. Neste sentido, sinto a necessidade de proceder a uma
salutar «descentralização».
17. Aqui escolhi propor algumas
diretrizes que possam encorajar e orientar, em toda a Igreja, uma nova etapa
evangelizadora, cheia de ardor e dinamismo. Neste quadro e com base na doutrina
da Constituição dogmática Lumen gentium, decidi, entre outros temas, de me
deter amplamente sobre as seguintes questões:
a) A reforma da Igreja em saída
missionária.b) As tentações dos agentes pastorais.
c) A Igreja vista como a totalidade
do povo de Deus que evangeliza.d) A homilia e a sua preparação.
e) A inclusão social dos
pobres.f) A paz e o diálogo social.
g) As motivações espirituais para
o compromisso missionário.
18. Demorei-me nestes temas,
desenvolvendo-os dum modo que talvez possa parecer excessivo. Mas não o fiz com
a intenção de oferecer um tratado, mas só para mostrar a relevante incidência
prática destes assuntos na missão atual da Igreja. De facto, todos eles ajudam
a delinear um preciso estilo evangelizador, que convido a assumir em qualquer atividade
que se realize. E, desta forma, podemos assumir, no meio do nosso trabalho
diário, esta exortação da Palavra de Deus: «Alegrai-vos sempre no Senhor! De
novo vos digo: alegrai-vos!» (Fl 4, 4).
Capítulo I
A TRANSFORMAÇÃO MISSIONÁRIA DA IGREJA
19. A evangelização obedece ao
mandato missionário de Jesus: «Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos,
batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a
cumprir tudo quanto vos tenho mandado» (Mt 28, 19-20). Nestes versículos,
aparece o momento em que o Ressuscitado envia os seus a pregar o Evangelho em
todos os tempos e lugares, para que a fé n’Ele se estenda a todos os cantos da
terra.
1. Uma Igreja «em saída»
20. Na Palavra de Deus, aparece
constantemente este dinamismo de «saída», que Deus quer provocar nos crentes.
Abraão aceitou a chamada para partir rumo a uma nova terra (cf. Gn 12, 1-3).
Moisés ouviu a chamada de Deus: «Vai; Eu te envio» (Ex 3, 10), e fez sair o
povo para a terra prometida (cf. Ex 3, 17). A Jeremias disse: «Irás aonde Eu te
enviar» (Jr 1, 7). Naquele «ide» de Jesus, estão presentes os cenários e os
desafios sempre novos da missão evangelizadora da Igreja, e hoje todos somos
chamados a esta nova «saída» missionária. Cada cristão e cada comunidade há-de
discernir qual é o caminho que o Senhor lhe pede, mas todos somos convidados a
aceitar esta chamada: sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar
todas as periferias que precisam da luz do Evangelho.
21. A alegria do Evangelho, que
enche a vida da comunidade dos discípulos, é uma alegria missionária.
Experimentam-na os setenta e dois discípulos, que voltam da missão cheios de
alegria (cf. Lc 10, 17). Vive-a Jesus, que exulta de alegria no Espírito Santo
e louva o Pai, porque a sua revelação chega aos pobres e aos pequeninos (cf. Lc
10, 21). Sentem-na, cheios de admiração, os primeiros que se convertem no
Pentecostes, ao ouvir «cada um na sua própria língua» (Act 2, 6) a pregação dos
Apóstolos. Esta alegria é um sinal de que o Evangelho foi anunciado e está a
frutificar. Mas contém sempre a dinâmica do êxodo e do dom, de sair de si
mesmo, de caminhar e de semear sempre de novo, sempre mais além. O Senhor diz:
«Vamos para outra parte, para as aldeias vizinhas, a fim de pregar aí, pois foi
para isso que Eu vim» (Mc 1, 38). Ele, depois de lançar a semente num lugar,
não se demora lá a explicar melhor ou a cumprir novos sinais, mas o Espírito
leva-O a partir para outras aldeias.
22. A Palavra possui, em si
mesma, uma tal potencialidade, que não a podemos prever. O Evangelho fala da
semente que, uma vez lançada à terra, cresce por si mesma, inclusive quando o
agricultor dorme (cf. Mc 4, 26-29). A Igreja deve aceitar esta liberdade
incontrolável da Palavra, que é eficaz a seu modo e sob formas tão variadas que
muitas vezes nos escapam, superando as nossas previsões e quebrando os nossos
esquemas.
23. A intimidade da Igreja com
Jesus é uma intimidade itinerante, e a comunhão «reveste essencialmente a forma
de comunhão missionária». Fiel ao modelo do Mestre, é vital que hoje a Igreja
saia para anunciar o Evangelho a todos, em todos os lugares, em todas as
ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo. A alegria do Evangelho é
para todo o povo, não se pode excluir ninguém; assim foi anunciada pelo anjo
aos pastores de Belém: «Não temais, pois anuncio-vos uma grande alegria, que o
será para todo o povo» (Lc 2, 10). O Apocalipse fala de «uma Boa-Nova de valor
eterno para anunciar aos habitantes da terra: a todas as nações, tribos, línguas
e povos» (Ap 14, 6).
«Primeirear», envolver-se,
acompanhar, frutificar e festejar
24. A Igreja «em saída» é a
comunidade de discípulos missionários que «primeireiam», que se envolvem, que
acompanham, que frutificam e festejam. Primeireiam – desculpai o neologismo –,
tomam a iniciativa! A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a
iniciativa, precedeu-a no amor (cf. 1 Jo 4, 10), e, por isso, ela sabe ir à
frente, sabe tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados
e chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos. Vive um
desejo inexaurível de oferecer misericórdia, fruto de ter experimentado a
misericórdia infinita do Pai e a sua força difusiva. Ousemos um pouco mais no
tomar a iniciativa! Como consequência, a Igreja sabe «envolver-se». Jesus lavou
os pés aos seus discípulos. O Senhor envolve-Se e envolve os seus, pondo-Se de
joelhos diante dos outros para os lavar; mas, logo a seguir, diz aos
discípulos: «Sereis felizes se o puserdes em prática» (Jo 13, 17). Com obras e
gestos, a comunidade missionária entra na vida diária dos outros, encurta as
distâncias, abaixa-se – se for necessário – até à humilhação e assume a vida
humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo. Os evangelizadores
contraem assim o «cheiro de ovelha», e estas escutam a sua voz. Em seguida, a
comunidade evangelizadora dispõe-se a «acompanhar». Acompanha a humanidade em
todos os seus processos, por mais duros e demorados que sejam. Conhece as
longas esperas e a suportação apostólica. A evangelização patenteia muita
paciência, e evita deter-se a considerar as limitações. Fiel ao dom do Senhor,
sabe também «frutificar». A comunidade evangelizadora mantém-se atenta aos
frutos, porque o Senhor a quer fecunda. Cuida do trigo e não perde a paz por
causa do joio. O semeador, quando vê surgir o joio no meio do trigo, não tem reações
lastimosas ou alarmistas. Encontra o modo para fazer com que a Palavra se
encarne numa situação concreta e dê frutos de vida nova, apesar de serem
aparentemente imperfeitos ou defeituosos. O discípulo sabe oferecer a vida
inteira e jogá-la até ao martírio como testemunho de Jesus Cristo, mas o seu
sonho não é estar cheio de inimigos, mas antes que a Palavra seja acolhida e
manifeste a sua força libertadora e renovadora. Por fim, a comunidade
evangelizadora jubilosa sabe sempre «festejar»: celebra e festeja cada pequena
vitória, cada passo em frente na evangelização. No meio desta exigência diária
de fazer avançar o bem, a evangelização jubilosa torna-se beleza na liturgia. A
Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza da liturgia, que é também
celebração da atividade evangelizadora e fonte dum renovado impulso para se
dar.
2. Pastoral em conversão
25. Não ignoro que hoje os
documentos não suscitam o mesmo interesse que noutras épocas, acabando
rapidamente esquecidos. Apesar disso sublinho que, aquilo que pretendo deixar
expresso aqui, possui um significado programático e tem consequências
importantes. Espero que todas as comunidades se esforcem por actuar os meios
necessários para avançar no caminho duma conversão pastoral e missionária, que
não pode deixar as coisas como estão. Neste momento, não nos serve uma «simples
administração». Constituamo-nos em «estado permanente de missão», em todas as
regiões da terra.
26. Paulo VI convidou a alargar o
apelo à renovação de modo que ressalte, com força, que não se dirige apenas aos
indivíduos, mas à Igreja inteira. Lembremos este texto memorável, que não
perdeu a sua força interpeladora: «A Igreja deve aprofundar a consciência de si
mesma, meditar sobre o seu próprio mistério (...). Desta consciência
esclarecida e operante deriva espontaneamente um desejo de comparar a imagem
ideal da Igreja, tal como Cristo a viu, quis e amou, ou seja, como sua Esposa
santa e imaculada (Ef 5, 27), com o rosto real que a Igreja apresenta hoje. (…)
Em consequência disso, surge uma necessidade generosa e quase impaciente de
renovação, isto é, de emenda dos defeitos, que aquela consciência denuncia e
rejeita, como se fosse um exame interior ao espelho do modelo que Cristo nos
deixou de Si mesmo».
O Concílio Vaticano II apresentou
a conversão eclesial como a abertura a uma reforma permanente de si mesma por
fidelidade a Jesus Cristo: «Toda a renovação da Igreja consiste essencialmente
numa maior fidelidade à própria vocação. (…) A Igreja peregrina é chamada por
Cristo a esta reforma perene. Como instituição humana e terrena, a Igreja
necessita perpetuamente desta reforma». Há estruturas eclesiais que podem
chegar a condicionar um dinamismo evangelizador; de igual modo, as boas
estruturas servem quando há uma vida que as anima, sustenta e avalia. Sem vida
nova e espírito evangélico autêntico, sem «fidelidade da Igreja à própria
vocação», toda e qualquer nova estrutura se corrompe em pouco tempo.
Uma renovação eclesial inadiável
27. Sonho com uma opção
missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os
horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal
proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à auto-preservação. A
reforma das estruturas, que a conversão pastoral exige, só se pode entender
neste sentido: fazer com que todas elas se tornem mais missionárias, que a
pastoral ordinária em todas as suas instâncias seja mais comunicativa e aberta,
que coloque os agentes pastorais em atitude constante de «saída» e, assim,
favoreça a resposta positiva de todos aqueles a quem Jesus oferece a sua
amizade. Como dizia João Paulo II aos Bispos da Oceânia, «toda a renovação na
Igreja há-de ter como alvo a missão, para não cair vítima duma espécie de
introversão eclesial».
28. A paróquia não é uma
estrutura caduca; precisamente porque possui uma grande plasticidade, pode
assumir formas muito diferentes que requerem a docilidade e a criatividade
missionária do Pastor e da comunidade. Embora não seja certamente a única
instituição evangelizadora, se for capaz de se reformar e adaptar
constantemente, continuará a ser «a própria Igreja que vive no meio das casas
dos seus filhos e das suas filhas». Isto supõe que esteja realmente em contacto
com as famílias e com a vida do povo, e não se torne uma estrutura complicada,
separada das pessoas, nem um grupo de eleitos que olham para si mesmos. A
paróquia é presença eclesial no território, âmbito para a escuta da Palavra, o
crescimento da vida cristã, o diálogo, o anúncio, a caridade generosa, a
adoração e a celebração. Através de todas as suas atividades, a paróquia
incentiva e forma os seus membros para serem agentes da evangelização. É
comunidade de comunidades, santuário onde os sedentos vão beber para
continuarem a caminhar, e centro de constante envio missionário. Temos, porém,
de reconhecer que o apelo à revisão e renovação das paróquias ainda não deu
suficientemente fruto, tornando-se ainda mais próximas das pessoas, sendo
âmbitos de viva comunhão e participação e orientando-se completamente para a
missão.
29. As outras instituições
eclesiais, comunidades de base e pequenas comunidades, movimentos e outras
formas de associação são uma riqueza da Igreja que o Espírito suscita para
evangelizar todos os ambientes e sectores. Frequentemente trazem um novo ardor
evangelizador e uma capacidade de diálogo com o mundo que renovam a Igreja. Mas
é muito salutar que não percam o contacto com esta realidade muito rica da
paróquia local e que se integrem de bom grado na pastoral orgânica da Igreja
particular. Esta integração evitará que fiquem só com uma parte do Evangelho e
da Igreja, ou que se transformem em nómades sem raízes.
30. Cada Igreja particular,
porção da Igreja Católica sob a guia do seu Bispo, está, também ela, chamada à
conversão missionária. Ela é o sujeito primário da evangelização, enquanto é a
manifestação concreta da única Igreja num lugar da terra e, nela, «está
verdadeiramente presente e opera a Igreja de Cristo, una, santa, católica e
apostólica». É a Igreja encarnada num espaço concreto, dotada de todos os meios
de salvação dados por Cristo, mas com um rosto local. A sua alegria de
comunicar Jesus Cristo exprime-se tanto na sua preocupação por anunciá-Lo noutros
lugares mais necessitados, como numa constante saída para as periferias do seu
território ou para os novos âmbitos socioculturais. Procura estar sempre onde
fazem mais falta a luz e a vida do Ressuscitado. Para que este impulso
missionário seja cada vez mais intenso, generoso e fecundo, exorto também cada
uma das Igrejas particulares a entrar decididamente num processo de
discernimento, purificação e reforma.
31. O Bispo deve favorecer sempre
a comunhão missionária na sua Igreja diocesana, seguindo o ideal das primeiras
comunidades cristãs, em que os crentes tinham um só coração e uma só alma (cf.
At 4, 32) . Para isso, às vezes pôr-se-á à frente para indicar a estrada e
sustentar a esperança do povo, outras vezes manter-se-á simplesmente no meio de
todos com a sua proximidade simples e misericordiosa e, em certas
circunstâncias, deverá caminhar atrás do povo, para ajudar aqueles que se
atrasaram e sobretudo porque o próprio rebanho possui o olfato para encontrar
novas estradas. Na sua missão de promover uma comunhão dinâmica, aberta e
missionária, deverá estimular e procurar o amadurecimento dos organismos de
participação propostos pelo Código de Direito Canónico e de outras formas de
diálogo pastoral, com o desejo de ouvir a todos, e não apenas alguns sempre
prontos a lisonjeá-lo. Mas o objetivo destes processos participativos não há-de
ser principalmente a organização eclesial, mas o sonho missionário de chegar a
todos.
32. Dado que sou chamado a viver
aquilo que peço aos outros, devo pensar também numa conversão do papado.
Compete-me, como Bispo de Roma, permanecer aberto às sugestões tendentes a um
exercício do meu ministério que o torne mais fiel ao significado que Jesus
Cristo pretendeu dar-lhe e às necessidades atuais da evangelização. O Papa João
Paulo II pediu que o ajudassem a encontrar «uma forma de exercício do primado
que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua missão, se abra a
uma situação nova». Pouco temos avançado neste sentido. Também o papado e as
estruturas centrais da Igreja universal precisam de ouvir este apelo a uma
conversão pastoral. O Concílio Vaticano II afirmou que, à semelhança das
antigas Igrejas patriarcais, as conferências episcopais podem «aportar uma
contribuição múltipla e fecunda, para que o sentimento colegial leve a
aplicações concretas». Mas este desejo não se realizou plenamente, porque ainda
não foi suficientemente explicitado um estatuto das conferências episcopais que
as considere como sujeitos de atribuições concretas, incluindo alguma autêntica
autoridade doutrinal. Uma centralização excessiva, em vez de ajudar, complica a
vida da Igreja e a sua dinâmica missionária.
33. A pastoral em chave
missionária exige o abandono deste cómodo critério pastoral: «fez-se sempre
assim». Convido todos a serem ousados e criativos nesta tarefa de repensar os
objetivos, as estruturas, o estilo e os métodos evangelizadores das respectivas
comunidades. Uma identificação dos fins, sem uma condigna busca comunitária dos
meios para os alcançar, está condenada a traduzir-se em mera fantasia. A todos
exorto a aplicarem, com generosidade e coragem, as orientações deste documento,
sem impedimentos nem receios. Importante é não caminhar sozinho, mas ter sempre
em conta os irmãos e, de modo especial, a guia dos Bispos, num discernimento
pastoral sábio e realista.
3. A partir do coração do
Evangelho
34. Se pretendemos colocar tudo
em chave missionária, isso aplica-se também à maneira de comunicar a mensagem.
No mundo atual, com a velocidade das comunicações e a seleção interessada dos
conteúdos feita pelos mass-media, a mensagem que anunciamos corre mais do que
nunca o risco de aparecer mutilada e reduzida a alguns dos seus aspectos
secundários. Consequentemente, algumas questões que fazem parte da doutrina
moral da Igreja ficam fora do contexto que lhes dá sentido. O problema maior
ocorre quando a mensagem que anunciamos parece então identificada com tais
aspectos secundários, que, apesar de serem relevantes, por si sozinhos não
manifestam o coração da mensagem de Jesus Cristo. Portanto, convém ser
realistas e não dar por suposto que os nossos interlocutores conhecem o
horizonte completo daquilo que dizemos ou que eles podem relacionar o nosso
discurso com o núcleo essencial do Evangelho que lhe confere sentido, beleza e
fascínio.
35. Uma pastoral em chave
missionária não está obsessionada pela transmissão desarticulada de uma
imensidade de doutrinas que se tentam impor à força de insistir. Quando se
assume um objetivo pastoral e um estilo missionário, que chegue realmente a todos
sem exceções nem exclusões, o anúncio concentra-se no essencial, no que é mais
belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário. A
proposta acaba simplificada, sem com isso perder profundidade e verdade, e
assim se torna mais convincente e radiosa.
36. Todas as verdades reveladas
procedem da mesma fonte divina e são acreditadas com a mesma fé, mas algumas
delas são mais importantes por exprimir mais diretamente o coração do
Evangelho. Neste núcleo fundamental, o que sobressai é a beleza do amor
salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado. Neste
sentido, o Concílio Vaticano II afirmou que «existe uma ordem ou “hierarquia”
das verdades da doutrina católica, já que o nexo delas com o fundamento da fé
cristã é diferente». Isto é válido tanto para os dogmas da fé como para o
conjunto dos ensinamentos da Igreja, incluindo a doutrina moral.
37. São Tomás de Aquino ensinava
que, também na mensagem moral da Igreja, há uma hierarquia nas virtudes e ações
que delas procedem. Aqui o que conta é, antes de mais nada, «a fé que atua pelo
amor» (Gal 5, 6). As obras de amor ao próximo são a manifestação externa mais
perfeita da graça interior do Espírito: «O elemento principal da Nova Lei é a
graça do Espírito Santo, que se manifesta através da fé que opera pelo amor».
Por isso afirma que, relativamente ao agir exterior, a misericórdia é a maior
de todas as virtudes: «Em si mesma, a misericórdia é a maior das virtudes; na
realidade, compete-lhe debruçar-se sobre os outros e – o que mais conta –
remediar as misérias alheias. Ora, isto é tarefa especialmente de quem é
superior; é por isso que se diz que é próprio de Deus usar de misericórdia e é,
sobretudo nisto, que se manifesta a sua omnipotência».
38. É importante tirar as consequências
pastorais desta doutrina conciliar, que recolhe uma antiga convicção da Igreja.
Antes de mais nada, deve-se dizer que, no anúncio do Evangelho, é necessário
que haja uma proporção adequada. Esta reconhece-se na frequência com que se
mencionam alguns temas e nas acentuações postas na pregação. Por exemplo, se um
pároco, durante um ano litúrgico, fala dez vezes sobre a temperança e apenas
duas ou três vezes sobre a caridade ou sobre a justiça, gera-se uma
desproporção, acabando obscurecidas precisamente aquelas virtudes que deveriam
estar mais presentes na pregação e na catequese. E o mesmo acontece quando se
fala mais da lei que da graça, mais da Igreja que de Jesus Cristo, mais do Papa
que da Palavra de Deus.
39. Tal como existe uma unidade
orgânica entre as virtudes que impede de excluir qualquer uma delas do ideal
cristão, assim também nenhuma verdade é negada. Não é preciso mutilar a
integridade da mensagem do Evangelho. Além disso, cada verdade entende-se
melhor se a colocarmos em relação com a totalidade harmoniosa da mensagem
cristã: e, neste contexto, todas as verdades têm a sua própria importância e
iluminam-se reciprocamente. Quando a pregação é fiel ao Evangelho, manifesta-se
com clareza a centralidade de algumas verdades e fica claro que a pregação
moral cristã não é uma ética estóica, é mais do que uma ascese, não é uma mera
filosofia prática nem um catálogo de pecados e erros. O Evangelho convida,
antes de tudo, a responder a Deus que nos ama e salva, reconhecendo-O nos
outros e saindo de nós mesmos para procurar o bem de todos. Este convite não
há-de ser obscurecido em nenhuma circunstância! Todas as virtudes estão ao
serviço desta resposta de amor. Se tal convite não refulge com vigor e
fascínio, o edifício moral da Igreja corre o risco de se tornar um castelo de
cartas, sendo este o nosso pior perigo; é que, então, não estaremos
propriamente a anunciar o Evangelho, mas algumas acentuações doutrinais ou
morais, que derivam de certas opções ideológicas. A mensagem correrá o risco de
perder o seu frescor e já não ter «o perfume do Evangelho».
4. A missão que se encarna nas
limitações humanas
40. A Igreja, que é discípula
missionária, tem necessidade de crescer na sua interpretação da Palavra
revelada e na sua compreensão da verdade. A tarefa dos exegetas e teólogos
ajuda a «amadurecer o juízo da Igreja». Embora de modo diferente, fazem-no
também as outras ciências. Referindo-se às ciências sociais, por exemplo, João
Paulo II disse que a Igreja presta atenção às suas contribuições «para obter
indicações concretas que a ajudem no cumprimento da sua missão de Magistério».
Além disso, dentro da Igreja, há inúmeras questões à volta das quais se indaga
e reflete com grande liberdade. As diversas linhas de pensamento filosófico,
teológico e pastoral, se se deixam harmonizar pelo Espírito no respeito e no
amor, podem fazer crescer a Igreja, enquanto ajudam a explicitar melhor o
tesouro riquíssimo da Palavra. A quantos sonham com uma doutrina monolítica
defendida sem nuances por todos, isto poderá parecer uma dispersão imperfeita;
mas a realidade é que tal variedade ajuda a manifestar e desenvolver melhor os
diversos aspectos da riqueza inesgotável do Evangelho.
41. Ao mesmo tempo, as enormes e
rápidas mudanças culturais exigem que prestemos constante atenção ao tentar
exprimir as verdades de sempre numa linguagem que permita reconhecer a sua
permanente novidade; é que, no depósito da doutrina cristã, «uma coisa é a
substância (...) e outra é a formulação que a reveste». Por vezes, mesmo
ouvindo uma linguagem totalmente ortodoxa, aquilo que os fiéis recebem, devido
à linguagem que eles mesmos utilizam e compreendem, é algo que não corresponde
ao verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo. Com a santa intenção de lhes comunicar
a verdade sobre Deus e o ser humano, nalgumas ocasiões, damos-lhes um falso
deus ou um ideal humano que não é verdadeiramente cristão. Deste modo, somos
fiéis a uma formulação, mas não transmitimos a substância. Este é o risco mais
grave. Lembremo-nos de que «a expressão da verdade pode ser multiforme. E a
renovação das formas de expressão torna-se necessária para transmitir ao homem
de hoje a mensagem evangélica no seu significado imutável».
42. Isto possui uma grande
relevância no anúncio do Evangelho, se temos verdadeiramente a peito fazer
perceber melhor a sua beleza e fazê-la acolher por todos. Em todo o caso, não
poderemos jamais tornar os ensinamentos da Igreja uma realidade facilmente
compreensível e felizmente apreciada por todos; a fé conserva sempre um aspecto
de cruz, certa obscuridade que não tira firmeza à sua adesão. Há coisas que se
compreendem e apreciam só a partir desta adesão que é irmã do amor, para além
da clareza com que se possam compreender as razões e os argumentos. Por isso, é
preciso recordar-se de que cada ensinamento da doutrina deve situar-se na
atitude evangelizadora que desperte a adesão do coração com a proximidade, o
amor e o testemunho.
43. No seu constante
discernimento, a Igreja pode chegar também a reconhecer costumes próprios não diretamente
ligados ao núcleo do Evangelho, alguns muito radicados no curso da história,
que hoje já não são interpretados da mesma maneira e cuja mensagem
habitualmente não é percebida de modo adequado. Podem até ser belos, mas agora
não prestam o mesmo serviço à transmissão do Evangelho. Não tenhamos medo de os
rever! Da mesma forma, há normas ou preceitos eclesiais que podem ter sido
muito eficazes noutras épocas, mas já não têm a mesma força educativa como
canais de vida. São Tomás de Aquino sublinhava que os preceitos dados por
Cristo e pelos Apóstolos ao povo de Deus «são pouquíssimos». E, citando Santo
Agostinho, observava que os preceitos adicionados posteriormente pela Igreja se
devem exigir com moderação, «para não tornar pesada a vida aos fiéis» nem
transformar a nossa religião numa escravidão, quando «a misericórdia de Deus
quis que fosse livre». Esta advertência, feita há vários séculos, tem uma atualidade
tremenda. Deveria ser um dos critérios a considerar, quando se pensa numa
reforma da Igreja e da sua pregação que permita realmente chegar a todos.
44. Aliás, tanto os Pastores como
todos os fiéis que acompanham os seus irmãos na fé ou num caminho de abertura a
Deus não podem esquecer aquilo que ensina, com muita clareza, o Catecismo da
Igreja Católica: «A imputabilidade e responsabilidade dum ato podem ser
diminuídas, e até anuladas, pela ignorância, a inadvertência, a violência, o
medo, os hábitos, as afeições desordenadas e outros fatores psíquicos ou
sociais».
Portanto, sem diminuir o valor do
ideal evangélico, é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência, as
possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se vão construindo dia após
dia. Aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de
tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor que nos incentiva a praticar o
bem possível. Um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser
mais agradável a Deus do que a vida externamente correcta de quem transcorre os
seus dias sem enfrentar sérias dificuldades. A todos deve chegar a consolação e
o estímulo do amor salvífico de Deus, que opera misteriosamente em cada pessoa,
para além dos seus defeitos e das suas quedas.
45. Vemos assim que o compromisso
evangelizador se move por entre as limitações da linguagem e das circunstâncias.
Procura comunicar cada vez melhor a verdade do Evangelho num contexto
determinado, sem renunciar à verdade, ao bem e à luz que pode dar quando a
perfeição não é possível. Um coração missionário está consciente destas
limitações, fazendo-se «fraco com os fracos (...) e tudo para todos» (1 Cor 9,
22). Nunca se fecha, nunca se refugia nas próprias seguranças, nunca opta pela
rigidez auto-defensiva. Sabe que ele mesmo deve crescer na compreensão do
Evangelho e no discernimento das sendas do Espírito, e assim não renuncia ao
bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada.
5. Uma mãe de coração aberto
46. A Igreja «em saída» é uma
Igreja com as portas abertas. Sair em direção aos outros para chegar às
periferias humanas não significa correr pelo mundo sem direção nem sentido.
Muitas vezes é melhor diminuir o ritmo, pôr de parte a ansiedade para olhar nos
olhos e escutar, ou renunciar às urgências para acompanhar quem ficou caído à
beira do caminho. Às vezes, é como o pai do filho pródigo, que continua com as
portas abertas para, quando este voltar, poder entrar sem dificuldade.
47. A Igreja é chamada a ser
sempre a casa aberta do Pai. Um dos sinais concretos desta abertura é ter, por
todo o lado, igrejas com as portas abertas. Assim, se alguém quiser seguir uma
moção do Espírito e se aproximar à procura de Deus, não esbarrará com a frieza
duma porta fechada. Mas há outras portas que também não se devem fechar: todos
podem participar de alguma forma na vida eclesial, todos podem fazer parte da
comunidade, e nem sequer as portas dos sacramentos se deveriam fechar por uma
razão qualquer. Isto vale sobretudo quando se trata daquele sacramento que é a
«porta»: o Baptismo. A Eucaristia, embora constitua a plenitude da vida
sacramental, não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um
alimento para os fracos. Estas convicções têm também consequências pastorais,
que somos chamados a considerar com prudência e audácia. Muitas vezes agimos
como controladores da graça e não como facilitadores. Mas a Igreja não é uma
alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fadigosa.
48. Se a Igreja inteira assume
este dinamismo missionário, há-de chegar a todos, sem excepção. Mas, a quem
deveria privilegiar? Quando se lê o Evangelho, encontramos uma orientação muito
clara: não tanto aos amigos e vizinhos ricos, mas sobretudo aos pobres e aos
doentes, àqueles que muitas vezes são desprezados e esquecidos, «àqueles que
não têm com que te retribuir» (Lc 14, 14). Não devem subsistir dúvidas nem
explicações que debilitem esta mensagem claríssima. Hoje e sempre, «os pobres
são os destinatários privilegiados do Evangelho», e a evangelização dirigida
gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem
rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os
deixemos jamais sozinhos!
49. Saiamos, saiamos para
oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Repito aqui, para toda a Igreja,
aquilo que muitas vezes disse aos sacerdotes e aos leigos de Buenos Aires:
prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas,
a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias
seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa
num emaranhado de obsessões e procedimentos. Se alguma coisa nos deve
santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos irmãos
nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo,
sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida.
Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos
nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam
em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá
fora há uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: «Dai-lhes vós
mesmos de comer» (Mc 6, 37).
Capítulo II
NA CRISE DO COMPROMISSO COMUNITÁRIO
50. Antes de falar de algumas
questões fundamentais relativas à ação evangelizadora, convém recordar
brevemente o contexto em que temos de viver e agir. É habitual hoje falar-se
dum «excesso de diagnóstico», que nem sempre é acompanhado por propostas
resolutivas e realmente aplicáveis. Por outro lado, também não nos seria de grande
proveito um olhar puramente sociológico, que tivesse a pretensão, com a sua
metodologia, de abraçar toda a realidade de maneira supostamente neutra e
asséptica. O que quero oferecer situa-se mais na linha dum discernimento
evangélico. É o olhar do discípulo missionário que «se nutre da luz e da força
do Espírito Santo».
51. Não é função do Papa oferecer
uma análise detalhada e completa da realidade contemporânea, mas animo todas as
comunidades a «uma capacidade sempre vigilante de estudar os sinais dos
tempos». Trata-se duma responsabilidade grave, pois algumas realidades
hodiernas, se não encontrarem boas soluções, podem desencadear processos de
desumanização tais que será difícil depois retroceder. É preciso esclarecer o
que pode ser um fruto do Reino e também o que atenta contra o projeto de Deus.
Isto implica não só reconhecer e interpretar as moções do espírito bom e do
espírito mau, mas também – e aqui está o ponto decisivo – escolher as do
espírito bom e rejeitar as do espírito mau. Pressuponho as várias análises que
ofereceram os outros documentos do Magistério universal, bem como as propostas
pelos episcopados regionais e nacionais. Nesta Exortação, pretendo debruçar-me,
brevemente e numa perspectiva pastoral, apenas sobre alguns aspectos da realidade
que podem deter ou enfraquecer os dinamismos de renovação missionária da
Igreja, seja porque afectam a vida e a dignidade do povo de Deus, seja porque
incidem sobre os sujeitos que mais diretamente participam nas instituições
eclesiais e nas tarefas de evangelização.
1. Alguns desafios do mundo atual
52. A humanidade vive, neste
momento, uma viragem histórica, que podemos constatar nos progressos que se
verificam em vários campos. São louváveis os sucessos que contribuem para o
bem-estar das pessoas, por exemplo, no âmbito da saúde, da educação e da
comunicação. Todavia não podemos esquecer que a maior parte dos homens e
mulheres do nosso tempo vive o seu dia a dia precariamente, com funestas
consequências. Aumentam algumas doenças. O medo e o desespero apoderam-se do
coração de inúmeras pessoas, mesmo nos chamados países ricos. A alegria de
viver frequentemente se desvanece; crescem a falta de respeito e a violência, a
desigualdade social torna-se cada vez mais patente. É preciso lutar para viver,
e muitas vezes viver com pouca dignidade. Esta mudança de época foi causada
pelos enormes saltos qualitativos, quantitativos, velozes e acumulados que se
verificam no progresso científico, nas inovações tecnológicas e nas suas
rápidas aplicações em diversos âmbitos da natureza e da vida. Estamos na era do
conhecimento e da informação, fonte de novas formas dum poder muitas vezes
anónimo.
Não a uma economia da exclusão
53. Assim como o mandamento «não
matar» põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também
hoje devemos dizer «não a uma economia da exclusão e da desigualdade social».
Esta economia mata. Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem
abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é
exclusão. Não se pode tolerar mais o facto de se lançar comida no lixo, quando
há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social. Hoje, tudo entra no
jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais
fraco. Em consequência desta situação, grandes massas da população vêem-se
excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspectivas, num beco sem saída.
O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode
usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do «descartável», que
aliás chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente do fenómeno de
exploração e opressão, mas duma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na
própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas,
na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são
«explorados», mas resíduos, «sobras».
54. Neste contexto, alguns
defendem ainda as teorias da «recaída favorável» que pressupõem que todo o
crescimento económico, favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo
produzir maior equidade e inclusão social no mundo. Esta opinião, que nunca foi
confirmada pelos factos, exprime uma confiança vaga e ingénua na bondade
daqueles que detêm o poder económico e nos mecanismos sacralizados do sistema
económico reinante. Entretanto, os excluídos continuam a esperar. Para se poder
apoiar um estilo de vida que exclui os outros ou mesmo entusiasmar-se com este
ideal egoísta, desenvolveu-se uma globalização da indiferença. Quase sem nos dar
conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, já
não choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos por cuidar
deles, como se tudo fosse uma responsabilidade de outrem, que não nos incumbe.
A cultura do bem-estar anestesia-nos, a ponto de perdermos a serenidade se o
mercado oferece algo que ainda não compramos, enquanto todas estas vidas
ceifadas por falta de possibilidades nos parecem um mero espectáculo que não
nos incomoda de forma alguma.
Não à nova idolatria do dinheiro
55. Uma das causas desta situação
está na relação estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o
seu domínio sobre nós e as nossas sociedades. A crise financeira que
atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica
profunda: a negação da primazia do ser humano. Criámos novos ídolos. A adoração
do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-35) encontrou uma nova e cruel versão
no fetichismo do dinheiro e na ditadura duma economia sem rosto e sem um
objectivo verdadeiramente humano. A crise mundial, que investe as finanças e a
economia, põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e sobretudo a grave
carência duma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas a uma das
suas necessidades: o consumo.
56. Enquanto os lucros de poucos
crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do
bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que
defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por
isso, negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela
tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual,
que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras.
Além disso, a dívida e os respectivos juros afastam os países das
possibilidades viáveis da sua economia, e os cidadãos do seu real poder de
compra. A tudo isto vem juntar-se uma corrupção ramificada e uma evasão fiscal
egoísta, que assumiram dimensões mundiais. A ambição do poder e do ter não
conhece limites. Neste sistema que tende a fagocitar tudo para aumentar os
benefícios, qualquer realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica
indefesa face aos interesses do mercado divinizado, transformados em regra
absoluta.
Não a um dinheiro que governa em vez de servir
57. Por detrás desta atitude,
escondem-se a rejeição da ética e a recusa de Deus. Para a ética, olha-se
habitualmente com um certo desprezo sarcástico; é considerada contraproducente,
demasiado humana, porque relativiza o dinheiro e o poder. É sentida como uma
ameaça, porque condena a manipulação e degradação da pessoa. Em última
instância, a ética leva a Deus que espera uma resposta comprometida que está
fora das categorias do mercado. Para estas, se absolutizadas, Deus é
incontrolável, não manipulável e até mesmo perigoso, na medida em que chama o
ser humano à sua plena realização e à independência de qualquer tipo de
escravidão. A ética – uma ética não ideologizada – permite criar um equilíbrio
e uma ordem social mais humana. Neste sentido, animo os peritos financeiros e
os governantes dos vários países a considerarem as palavras dum sábio da
antiguidade: «Não fazer os pobres participar dos seus próprios bens é roubá-los
e tirar-lhes a vida. Não são nossos, mas deles, os bens que aferrolhamos».
58. Uma reforma financeira que
tivesse em conta a ética exigiria uma vigorosa mudança de atitudes por parte
dos dirigentes políticos, a quem exorto a enfrentar este desafio com
determinação e clarividência, sem esquecer naturalmente a especificidade de
cada contexto. O dinheiro deve servir, e não governar! O Papa ama a todos,
ricos e pobres, mas tem a obrigação, em nome de Cristo, de lembrar que os ricos
devem ajudar os pobres, respeitá-los e promovê-los. Exorto-vos a uma solidariedade
desinteressada e a um regresso da economia e das finanças a uma ética propícia
ao ser humano.
Não à desigualdade social que gera violência
59. Hoje, em muitas partes,
reclama-se maior segurança. Mas, enquanto não se eliminar a exclusão e a
desigualdade dentro da sociedade e entre os vários povos será impossível
desarreigar a violência. Acusam-se da violência os pobres e as populações mais
pobres, mas, sem igualdade de oportunidades, as várias formas de agressão e de
guerra encontrarão um terreno fértil que, mais cedo ou mais tarde, há-de
provocar a explosão. Quando a sociedade – local, nacional ou mundial – abandona
na periferia uma parte de si mesma, não há programas políticos, nem forças da
ordem ou serviços secretos que possam garantir indefinidamente a tranquilidade.
Isto não acontece apenas porque a desigualdade social provoca a reacção
violenta de quantos são excluídos do sistema, mas porque o sistema social e
económico é injusto na sua raiz. Assim como o bem tende a difundir-se, assim
também o mal consentido, que é a injustiça, tende a expandir a sua força nociva
e a minar, silenciosamente, as bases de qualquer sistema político e social, por
mais sólido que pareça. Se cada acção tem consequências, um mal embrenhado nas
estruturas duma sociedade sempre contém um potencial de dissolução e de morte.
É o mal cristalizado nas estruturas sociais injustas, a partir do qual não
podemos esperar um futuro melhor. Estamos longe do chamado «fim da história»,
já que as condições dum desenvolvimento sustentável e pacífico ainda não estão
adequadamente implantadas e realizadas.
60. Os mecanismos da economia
actual promovem uma exacerbação do consumo, mas sabe-se que o consumismo
desenfreado, aliado à desigualdade social, é duplamente daninho para o tecido
social. Assim, mais cedo ou mais tarde, a desigualdade social gera uma
violência que as corridas armamentistas não resolvem nem poderão resolver
jamais. Servem apenas para tentar enganar aqueles que reclamam maior segurança,
como se hoje não se soubesse que as armas e a repressão violenta, mais do que
dar solução, criam novos e piores conflitos. Alguns comprazem-se simplesmente
em culpar, dos próprios males, os pobres e os países pobres, com generalizações
indevidas, e pretendem encontrar a solução numa «educação» que os tranquilize e
transforme em seres domesticados e inofensivos. Isto torna-se ainda mais
irritante, quando os excluídos vêem crescer este câncer social que é a
corrupção profundamente radicada em muitos países – nos seus Governos,
empresários e instituições – seja qual for a ideologia política dos
governantes.
Alguns desafios culturais
61. Evangelizamos também
procurando enfrentar os diferentes desafios que se nos podem apresentar. Às
vezes, estes manifestam-se em verdadeiros ataques à liberdade religiosa ou em
novas situações de perseguição aos cristãos, que, nalguns países, atingiram
níveis alarmantes de ódio e violência. Em muitos lugares, trata-se mais de uma
generalizada indiferença relativista, relacionada com a desilusão e a crise das
ideologias que se verificou como reacção a tudo o que pareça totalitário. Isto
não prejudica só a Igreja, mas a vida social em geral. Reconhecemos que, numa
cultura onde cada um pretende ser portador duma verdade subjectiva própria,
torna-se difícil que os cidadãos queiram inserir-se num projecto comum que vai
além dos benefícios e desejos pessoais.
62. Na cultura dominante, ocupa o
primeiro lugar aquilo que é exterior, imediato, visível, rápido, superficial,
provisório. O real cede o lugar à aparência. Em muitos países, a globalização
comportou uma acelerada deterioração das raízes culturais com a invasão de
tendências pertencentes a outras culturas, economicamente desenvolvidas mas
eticamente debilitadas. Assim se exprimiram, em distintos Sínodos, os Bispos de
vários continentes. Há alguns anos, os Bispos da África, por exemplo, retomando
a Encíclica Sollicitudo rei socialis, assinalaram que muitas vezes se quer
transformar os países africanos em meras «peças de um mecanismo, partes de uma
engrenagem gigantesca. Isto verifica-se com frequência também no domínio dos
meios de comunicação social, os quais, sendo na sua maior parte geridos por
centros situados na parte norte do mundo, nem sempre têm na devida conta as
prioridades e os problemas próprios desses países e não respeitam a sua
fisionomia cultural». De igual modo, os Bispos da Ásia sublinharam «as
influências externas que estão a penetrar nas culturas asiáticas. Vão surgindo
formas novas de comportamento resultantes da orientação dos mass-media (…). Em
consequência disso, os aspectos negativos dos mass-media e espectáculos estão a
ameaçar os valores tradicionais».
63. A fé católica de muitos povos
encontra-se hoje perante o desafio da proliferação de novos movimentos
religiosos, alguns tendentes ao fundamentalismo e outros que parecem propor uma
espiritualidade sem Deus. Isto, por um lado, é o resultado duma reacção humana
contra a sociedade materialista, consumista e individualista e, por outro, um
aproveitamento das carências da população que vive nas periferias e zonas
pobres, sobrevive no meio de grandes preocupações humanas e procura soluções
imediatas para as suas necessidades. Estes movimentos religiosos, que se
caracterizam pela sua penetração subtil, vêm colmar, dentro do individualismo
reinante, um vazio deixado pelo racionalismo secularista. Além disso, é
necessário reconhecer que, se uma parte do nosso povo baptizado não sente a sua
pertença à Igreja, isso deve-se também à existência de estruturas com clima
pouco acolhedor nalgumas das nossas paróquias e comunidades, ou à atitude
burocrática com que se dá resposta aos problemas, simples ou complexos, da vida
dos nossos povos. Em muitas partes, predomina o aspecto administrativo sobre o
pastoral, bem como uma sacramentalização sem outras formas de evangelização.
64. O processo de secularização
tende a reduzir a fé e a Igreja ao âmbito privado e íntimo. Além disso, com a
negação de toda a transcendência, produziu-se uma crescente deformação ética,
um enfraquecimento do sentido do pecado pessoal e social e um aumento
progressivo do relativismo; e tudo isso provoca uma desorientação generalizada,
especialmente na fase tão vulnerável às mudanças da adolescência e juventude.
Como justamente observam os Bispos dos Estados Unidos da América, enquanto a
Igreja insiste na existência de normas morais objectivas, válidas para todos,
«há aqueles que apresentam esta doutrina como injusta, ou seja, contrária aos
direitos humanos básicos. Tais alegações brotam habitualmente de uma forma de
relativismo moral, que se une consistentemente a uma confiança nos direitos
absolutos dos indivíduos. Nesta perspectiva, a Igreja é sentida como se
estivesse promovendo um convencionalismo particular e interferisse com a
liberdade individual». Vivemos numa sociedade da informação que nos satura
indiscriminadamente de dados, todos postos ao mesmo nível, e acaba por nos
conduzir a uma tremenda superficialidade no momento de enquadrar as questões
morais. Por conseguinte, torna-se necessária uma educação que ensine a pensar
criticamente e ofereça um caminho de amadurecimento nos valores.
65. Apesar de toda a corrente
secularista que invade a sociedade, em muitos países – mesmo onde o
cristianismo está em minoria – a Igreja Católica é uma instituição credível
perante a opinião pública, fiável no que diz respeito ao âmbito da
solidariedade e preocupação pelos mais indigentes. Em repetidas ocasiões, ela
serviu de medianeira na solução de problemas que afectam a paz, a concórdia, o
meio ambiente, a defesa da vida, os direitos humanos e civis, etc. E como é
grande a contribuição das escolas e das universidades católicas no mundo
inteiro! E é muito bom que assim seja. Mas, quando levantamos outras questões
que suscitam menor acolhimento público, custa-nos a demonstrar que o fazemos
por fidelidade às mesmas convicções sobre a dignidade da pessoa humana e do bem
comum.
66. A família atravessa uma crise
cultural profunda, como todas as comunidades e vínculos sociais. No caso da
família, a fragilidade dos vínculos reveste-se de especial gravidade, porque se
trata da célula básica da sociedade, o espaço onde se aprende a conviver na
diferença e a pertencer aos outros e onde os pais transmitem a fé aos seus
filhos. O matrimónio tende a ser visto como mera forma de gratificação
afectiva, que se pode constituir de qualquer maneira e modificar-se de acordo
com a sensibilidade de cada um. Mas a contribuição indispensável do matrimónio
à sociedade supera o nível da afectividade e o das necessidades ocasionais do
casal. Como ensinam os Bispos franceses, não provém «do sentimento amoroso,
efémero por definição, mas da profundidade do compromisso assumido pelos
esposos que aceitam entrar numa união de vida total».
67. O individualismo pós-moderno
e globalizado favorece um estilo de vida que debilita o desenvolvimento e a
estabilidade dos vínculos entre as pessoas e distorce os vínculos familiares. A
acção pastoral deve mostrar ainda melhor que a relação com o nosso Pai exige e
incentiva uma comunhão que cura, promove e fortalece os vínculos interpessoais.
Enquanto no mundo, especialmente nalguns países, se reacendem várias formas de
guerras e conflitos, nós, cristãos, insistimos na proposta de reconhecer o
outro, de curar as feridas, de construir pontes, de estreitar laços e de nos
ajudarmos «a carregar as cargas uns dos outros» (Gal 6, 2). Além disso, vemos
hoje surgir muitas formas de agregação para a defesa de direitos e a consecução
de nobres objectivos. Deste modo se manifesta uma sede de participação de
numerosos cidadãos, que querem ser construtores do desenvolvimento social e
cultural.
Desafios da inculturação da fé
68. O substrato cristão dalguns
povos – sobretudo ocidentais – é uma realidade viva. Aqui encontramos,
especialmente nos mais necessitados, uma reserva moral que guarda valores de
autêntico humanismo cristão. Um olhar de fé sobre a realidade não pode deixar
de reconhecer o que semeia o Espírito Santo. Significaria não ter confiança na
sua acção livre e generosa pensar que não existem autênticos valores cristãos,
onde uma grande parte da população recebeu o Baptismo e exprime de variadas
maneiras a sua fé e solidariedade fraterna. Aqui há que reconhecer muito mais
que «sementes do Verbo», visto que se trata duma autêntica fé católica com
modalidades próprias de expressão e de pertença à Igreja. Não convém ignorar a
enorme importância que tem uma cultura marcada pela fé, porque, não obstante os
seus limites, esta cultura evangelizada tem, contra os ataques do secularismo
actual, muitos mais recursos do que a mera soma dos crentes. Uma cultura
popular evangelizada contém valores de fé e solidariedade que podem provocar o
desenvolvimento duma sociedade mais justa e crente, e possui uma sabedoria
peculiar que devemos saber reconhecer com olhar agradecido.
69. Há uma necessidade imperiosa
de evangelizar as culturas para inculturar o Evangelho. Nos países de tradição
católica, tratar-se-á de acompanhar, cuidar e fortalecer a riqueza que já
existe e, nos países de outras tradições religiosas ou profundamente
secularizados, há que procurar novos processos de evangelização da cultura,
ainda que suponham projectos a longo prazo. Entretanto não podemos ignorar que
há sempre uma chamada ao crescimento: toda a cultura e todo o grupo social
necessitam de purificação e amadurecimento. No caso das culturas populares de
povos católicos, podemos reconhecer algumas fragilidades que precisam ainda de
ser curadas pelo Evangelho: o machismo, o alcoolismo, a violência doméstica,
uma escassa participação na Eucaristia, crenças fatalistas ou supersticiosas
que levam a recorrer à bruxaria, etc. Mas o melhor ponto de partida para curar
e ver-se livre de tais fragilidades é precisamente a piedade popular.
70. Certo é também que, às vezes,
se dá maior realce a formas exteriores das tradições de grupos concretos ou a
supostas revelações privadas, que se absolutizam, do que ao impulso da piedade
cristã. Há certo cristianismo feito de devoções – próprio duma vivência
individual e sentimental da fé – que, na realidade, não corresponde a uma
autêntica «piedade popular». Alguns promovem estas expressões sem se preocupar
com a promoção social e a formação dos fiéis, fazendo-o nalguns casos para
obter benefícios económicos ou algum poder sobre os outros. Também não podemos
ignorar que, nas últimas décadas, se produziu uma ruptura na transmissão geracional
da fé cristã no povo católico. É inegável que muitos se sentem desiludidos e
deixam de se identificar com a tradição católica, que cresceu o número de pais
que não baptizam os seus filhos nem os ensinam a rezar, e que há um certo êxodo
para outras comunidades de fé. Algumas causas desta ruptura são a falta de
espaços de diálogo familiar, a influência dos meios de comunicação, o
subjectivismo relativista, o consumismo desenfreado que o mercado incentiva, a
falta de cuidado pastoral pelos mais pobres, a inexistência dum acolhimento
cordial nas nossas instituições, e a dificuldade que sentimos em recriar a
adesão mística da fé num cenário religioso pluralista.
Desafios das culturas urbanas
71. A nova Jerusalém, a cidade
santa (cf. Ap 21, 2-4), é a meta para onde peregrina toda a humanidade. É
interessante que a revelação nos diga que a plenitude da humanidade e da
história se realiza numa cidade. Precisamos de identificar a cidade a partir
dum olhar contemplativo, isto é, um olhar de fé que descubra Deus que habita
nas suas casas, nas suas ruas, nas suas praças. A presença de Deus acompanha a
busca sincera que indivíduos e grupos efectuam para encontrar apoio e sentido
para a sua vida. Ele vive entre os citadinos promovendo a solidariedade, a
fraternidade, o desejo de bem, de verdade, de justiça. Esta presença não
precisa de ser criada, mas descoberta, desvendada. Deus não Se esconde de
quantos O buscam com coração sincero, ainda que o façam tacteando, de maneira
imprecisa e incerta.
72. Na cidade, o elemento
religioso é mediado por diferentes estilos de vida, por costumes ligados a um
sentido do tempo, do território e das relações que difere do estilo das
populações rurais. Na vida quotidiana, muitas vezes os citadinos lutam para
sobreviver e, nesta luta, esconde-se um sentido profundo da existência que
habitualmente comporta também um profundo sentido religioso. Precisamos de o
contemplar para conseguirmos um diálogo parecido com o que o Senhor teve com a
Samaritana, junto do poço onde ela procurava saciar a sua sede (cf. Jo 4,
7-26).
73. Novas culturas continuam a
formar-se nestas enormes geografias humanas onde o cristão já não costuma ser
promotor ou gerador de sentido, mas recebe delas outras linguagens, símbolos,
mensagens e paradigmas que oferecem novas orientações de vida, muitas vezes em
contraste com o Evangelho de Jesus. Uma cultura inédita palpita e está em
elaboração na cidade. O Sínodo constatou que as transformações destas grandes
áreas e a cultura que exprimem são, hoje, um lugar privilegiado da nova
evangelização. Isto requer imaginar espaços de oração e de comunhão com
características inovadoras, mais atraentes e significativas para as populações
urbanas. Os ambientes rurais, devido à influência dos mass-media, não estão
imunes destas transformações culturais que também operam mudanças
significativas nas suas formas de vida.
74. Torna-se necessária uma
evangelização que ilumine os novos modos de se relacionar com Deus, com os
outros e com o ambiente, e que suscite os valores fundamentais. É necessário
chegar aonde são concebidas as novas histórias e paradigmas, alcançar com a
Palavra de Jesus os núcleos mais profundos da alma das cidades. Não se deve
esquecer que a cidade é um âmbito multicultural. Nas grandes cidades, pode
observar-se uma trama em que grupos de pessoas compartilham as mesmas formas de
sonhar a vida e ilusões semelhantes, constituindo-se em novos sectores humanos,
em territórios culturais, em cidades invisíveis. Na realidade, convivem
variadas formas culturais, mas exercem muitas vezes práticas de segregação e
violência. A Igreja é chamada a ser servidora dum diálogo difícil. Enquanto há
citadinos que conseguem os meios adequados para o desenvolvimento da vida
pessoal e familiar, muitíssimos são também os «não-citadinos», os «meio-citadinos»
ou os «resíduos urbanos». A cidade dá origem a uma espécie de ambivalência
permanente, porque, ao mesmo tempo que oferece aos seus habitantes infinitas
possibilidades, interpõe também numerosas dificuldades ao pleno desenvolvimento
da vida de muitos. Esta contradição provoca sofrimentos lancinantes. Em muitas
partes do mundo, as cidades são cenário de protestos em massa, onde milhares de
habitantes reclamam liberdade, participação, justiça e várias reivindicações
que, se não forem adequadamente interpretadas, nem pela força poderão ser
silenciadas.
75. Não podemos ignorar que, nas
cidades, facilmente se desenvolve o tráfico de drogas e de pessoas, o abuso e a
exploração de menores, o abandono de idosos e doentes, várias formas de
corrupção e crime. Ao mesmo tempo, o que poderia ser um precioso espaço de
encontro e solidariedade, transforma-se muitas vezes num lugar de retraimento e
desconfiança mútua. As casas e os bairros constroem-se mais para isolar e
proteger do que para unir e integrar. A proclamação do Evangelho será uma base
para restabelecer a dignidade da vida humana nestes contextos, porque Jesus
quer derramar nas cidades vida em abundância (cf. Jo 10, 10). O sentido
unitário e completo da vida humana proposto pelo Evangelho é o melhor remédio
para os males urbanos, embora devamos reparar que um programa e um estilo
uniformes e rígidos de evangelização não são adequados para esta realidade. Mas
viver a fundo a realidade humana e inserir-se no coração dos desafios como
fermento de testemunho, em qualquer cultura, em qualquer cidade, melhora o
cristão e fecunda a cidade.
2. Tentações dos agentes pastorais
76. Sinto uma enorme gratidão
pela tarefa de quantos trabalham na Igreja. Não quero agora deter-me na
exposição das actividades dos vários agentes pastorais, desde os Bispos até ao
mais simples e ignorado dos serviços eclesiais. Prefiro reflectir sobre os
desafios que todos eles enfrentam no meio da cultura globalizada actual. Mas,
antes de tudo e como dever de justiça, tenho a dizer que é enorme a
contribuição da Igreja no mundo actual. A nossa tristeza e vergonha pelos
pecados de alguns membros da Igreja, e pelos próprios, não devem fazer esquecer
os inúmeros cristãos que dão a vida por amor: ajudam tantas pessoas seja a
curar-se seja a morrer em paz em hospitais precários, acompanham as pessoas que
caíram escravas de diversos vícios nos lugares mais pobres da terra,
prodigalizam-se na educação de crianças e jovens, cuidam de idosos abandonados
por todos, procuram comunicar valores em ambientes hostis, e dedicam-se de
muitas outras maneiras que mostram o imenso amor à humanidade inspirado por
Deus feito homem. Agradeço o belo exemplo que me dão tantos cristãos que
oferecem a sua vida e o seu tempo com alegria. Este testemunho faz-me muito bem
e me apoia na minha aspiração pessoal de superar o egoísmo para uma dedicação
maior.
77. Apesar disso, como filhos
desta época, todos estamos de algum modo sob o influxo da cultura globalizada
actual, que, sem deixar de apresentar valores e novas possibilidades, pode
também limitar-nos, condicionar-nos e até mesmo combalir-nos. Reconheço que
precisamos de criar espaços apropriados para motivar e sanar os agentes
pastorais, «lugares onde regenerar a sua fé em Jesus crucificado e
ressuscitado, onde compartilhar as próprias questões mais profundas e as
preocupações quotidianas, onde discernir em profundidade e com critérios
evangélicos sobre a própria existência e experiência, com o objectivo de
orientar para o bem e a beleza as próprias opções individuais e sociais». Ao
mesmo tempo, quero chamar a atenção para algumas tentações que afectam,
particularmente nos nossos dias, os agentes pastorais.
Sim ao desafio duma espiritualidade missionária
78. Hoje nota-se em muitos
agentes pastorais, mesmo pessoas consagradas, uma preocupação exacerbada pelos
espaços pessoais de autonomia e relaxamento, que leva a viver os próprios
deveres como mero apêndice da vida, como se não fizessem parte da própria
identidade. Ao mesmo tempo, a vida espiritual confunde-se com alguns momentos
religiosos que proporcionam algum alívio, mas não alimentam o encontro com os
outros, o compromisso no mundo, a paixão pela evangelização. Assim, é possível
notar em muitos agentes evangelizadores – não obstante rezem – uma acentuação
do individualismo, uma crise de identidade e um declínio do fervor. São três
males que se alimentam entre si.
79. A cultura mediática e alguns
ambientes intelectuais transmitem, às vezes, uma acentuada desconfiança quanto
à mensagem da Igreja, e um certo desencanto. Em consequência disso, embora
rezando, muitos agentes pastorais desenvolvem uma espécie de complexo de
inferioridade que os leva a relativizar ou esconder a sua identidade cristã e
as suas convicções. Gera-se então um círculo vicioso, porque assim não se sentem
felizes com o que são nem com o que fazem, não se sentem identificados com a
missão evangelizadora, e isto debilita a entrega. Acabam assim por sufocar a
alegria da missão numa espécie de obsessão por serem como todos os outros e
terem o que possuem os demais. Deste modo, a tarefa da evangelização torna-se
forçada e dedica-se-lhe pouco esforço e um tempo muito limitado.
80. Nos agentes pastorais,
independentemente do estilo espiritual ou da linha de pensamento que possam
ter, desenvolve-se um relativismo ainda mais perigoso que o doutrinal. Tem a
ver com as opções mais profundas e sinceras que determinam uma forma de vida
concreta. Este relativismo prático é agir como se Deus não existisse, decidir
como se os pobres não existissem, sonhar como se os outros não existissem,
trabalhar como se aqueles que não receberam o anúncio não existissem. É
impressionante como até aqueles que aparentemente dispõem de sólidas convicções
doutrinais e espirituais acabam, muitas vezes, por cair num estilo de vida que
os leva a agarrarem-se a seguranças económicas ou a espaços de poder e de
glória humana que se buscam por qualquer meio, em vez de dar a vida pelos
outros na missão. Não nos deixemos roubar o entusiasmo missionário!
Não à acédia egoísta
81. Quando mais precisamos dum
dinamismo missionário que leve sal e luz ao mundo, muitos leigos temem que
alguém os convide a realizar alguma tarefa apostólica e procuram fugir de
qualquer compromisso que lhes possa roubar o tempo livre. Hoje, por exemplo,
tornou-se muito difícil nas paróquias conseguir catequistas que estejam
preparados e perseverem no seu dever por vários anos. Mas algo parecido
acontece com os sacerdotes que se preocupam obsessivamente com o seu tempo
pessoal. Isto, muitas vezes, fica-se a dever a que as pessoas sentem
imperiosamente necessidade de preservar os seus espaços de autonomia, como se
uma tarefa de evangelização fosse um veneno perigoso e não uma resposta alegre
ao amor de Deus que nos convoca para a missão e nos torna completos e fecundos.
Alguns resistem a provar até ao fundo o gosto da missão e acabam mergulhados
numa acédia paralisadora.
82. O problema não está sempre no
excesso de actividades, mas sobretudo nas actividades mal vividas, sem as
motivações adequadas, sem uma espiritualidade que impregne a acção e a torne
desejável. Daí que as obrigações cansem mais do que é razoável, e às vezes
façam adoecer. Não se trata duma fadiga feliz, mas tensa, gravosa, desagradável
e, em definitivo, não assumida. Esta acédia pastoral pode ter origens diversas:
alguns caem nela por sustentarem projectos irrealizáveis e não viverem de bom
grado o que poderiam razoavelmente fazer; outros, por não aceitarem a custosa
evolução dos processos e querem que tudo caia do Céu; outros, por se apegarem a
alguns projectos ou a sonhos de sucesso cultivados pela sua vaidade; outros,
por terem perdido o contacto real com o povo, numa despersonalização da
pastoral que leva a prestar mais atenção à organização do que às pessoas,
acabando assim por se entusiasmarem mais com a «tabela de marcha» do que com a
própria marcha; outros ainda caem na acédia, por não saberem esperar e quererem
dominar o ritmo da vida. A ânsia hodierna de chegar a resultados imediatos faz
com que os agentes pastorais não tolerem facilmente tudo o que signifique
alguma contradição, um aparente fracasso, uma crítica, uma cruz.
83. Assim se gera a maior ameaça,
que «é o pragmatismo cinzento da vida quotidiana da Igreja, no qual
aparentemente tudo procede dentro da normalidade, mas na realidade a fé vai-se
deteriorando e degenerando na mesquinhez». Desenvolve-se a psicologia do
túmulo, que pouco a pouco transforma os cristãos em múmias de museu.
Desiludidos com a realidade, com a Igreja ou consigo mesmos, vivem
constantemente tentados a apegar-se a uma tristeza melosa, sem esperança, que
se apodera do coração como «o mais precioso elixir do demónio». Chamados para
iluminar e comunicar vida, acabam por se deixar cativar por coisas que só geram
escuridão e cansaço interior e corroem o dinamismo apostólico. Por tudo isto,
permiti que insista: Não deixemos que nos roubem a alegria da evangelização!
Não ao pessimismo estéril
84. A alegria do Evangelho é tal
que nada e ninguém no-la poderá tirar (cf. Jo 16, 22). Os males do nosso mundo
– e os da Igreja – não deveriam servir como desculpa para reduzir a nossa
entrega e o nosso ardor. Vejamo-los como desafios para crescer. Além disso, o
olhar crente é capaz de reconhecer a luz que o Espírito Santo sempre irradia no
meio da escuridão, sem esquecer que, «onde abundou o pecado, superabundou a
graça» (Rm 5, 20). A nossa fé é desafiada a entrever o vinho em que a água pode
ser transformada, e a descobrir o trigo que cresce no meio do joio. Cinquenta
anos depois do Concílio Vaticano II, apesar de nos entristecerem as misérias do
nosso tempo e estarmos longe de optimismos ingénuos, um maior realismo não deve
significar menor confiança no Espírito nem menor generosidade. Neste sentido,
podemos voltar a ouvir as palavras pronunciadas pelo Beato João XXIII naquele
memorável 11 de Outubro de 1962: «Chegam-nos aos ouvidos insinuações de almas,
ardorosas sem dúvida no zelo, mas não dotadas de grande sentido de discrição e
moderação. Nos tempos actuais, não vêem senão prevaricações e ruínas. [...] Mas
a nós parece-nos que devemos discordar desses profetas de desgraças, que
anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do
mundo. Na ordem presente das coisas, a misericordiosa Providência está-nos
levantando para uma ordem de relações humanas que, por obra dos homens e a
maior parte das vezes para além do que eles esperam, se encaminham para o
cumprimento dos seus desígnios superiores e inesperados, e tudo, mesmo as
adversidades humanas, converge para o bem da Igreja».
85. Uma das tentações mais sérias
que sufoca o fervor e a ousadia é a sensação de derrota que nos transforma em
pessimistas lamurientos e desencantados com cara de vinagre. Ninguém pode
empreender uma luta, se de antemão não está plenamente confiado no triunfo.
Quem começa sem confiança, perdeu de antemão metade da batalha e enterra os
seus talentos. Embora com a dolorosa consciência das próprias fraquezas, há que
seguir em frente, sem se dar por vencido, e recordar o que disse o Senhor a São
Paulo: «Basta-te a minha graça, porque a força manifesta-se na fraqueza» (2 Cor
12, 9). O triunfo cristão é sempre uma cruz, mas cruz que é, simultaneamente,
estandarte de vitória, que se empunha com ternura batalhadora contra as
investidas do mal. O mau espírito da derrota é irmão da tentação de separar
prematuramente o trigo do joio, resultado de uma desconfiança ansiosa e
egocêntrica.
86. É verdade que, nalguns
lugares, se produziu uma «desertificação» espiritual, fruto do projecto de
sociedades que querem construir sem Deus ou que destroem as suas raízes cristãs.
Lá, «o mundo cristão está a tornar-se estéril e se esgota como uma terra
excessivamente desfrutada que se transforma em poeira». Noutros países, a
resistência violenta ao cristianismo obriga os cristãos a viverem a sua fé às
escondidas no país que amam. Esta é outra forma muito triste de deserto. E a
própria família ou o lugar de trabalho podem ser também o tal ambiente árido,
onde há que conservar a fé e procurar irradiá-la. Mas «é precisamente a partir
da experiência deste deserto, deste vazio, que podemos redescobrir a alegria de
crer, a sua importância vital para nós, homens e mulheres. No deserto, é
possível redescobrir o valor daquilo que é essencial para a vida; assim sendo,
no mundo de hoje, há inúmeros sinais da sede de Deus, do sentido último da vida,
ainda que muitas vezes expressos implícita ou negativamente. E, no deserto,
existe sobretudo a necessidade de pessoas de fé que, com suas próprias vidas,
indiquem o caminho para a Terra Prometida, mantendo assim viva a esperança». Em
todo o caso, lá somos chamados a ser pessoas-cântaro para dar de beber aos
outros. Às vezes o cântaro transforma-se numa pesada cruz, mas foi precisamente
na Cruz que o Senhor, trespassado, Se nos entregou como fonte de água viva. Não
deixemos que nos roubem a esperança!
Sim às relações novas geradas por Jesus Cristo
87. Neste tempo em que as redes e
demais instrumentos da comunicação humana alcançaram progressos inauditos,
sentimos o desafio de descobrir e transmitir a «mística» de viver juntos,
misturar-nos, encontrar-nos, dar o braço, apoiar-nos, participar nesta maré um
pouco caótica que pode transformar-se numa verdadeira experiência de
fraternidade, numa caravana solidária, numa peregrinação sagrada. Assim, as
maiores possibilidades de comunicação traduzir-se-ão em novas oportunidades de
encontro e solidariedade entre todos. Como seria bom, salutar, libertador,
esperançoso, se pudéssemos trilhar este caminho! Sair de si mesmo para se unir
aos outros faz bem. Fechar-se em si mesmo é provar o veneno amargo da imanência,
e a humanidade perderá com cada opção egoísta que fizermos.
88. O ideal cristão convidará
sempre a superar a suspeita, a desconfiança permanente, o medo de sermos
invadidos, as atitudes defensivas que nos impõe o mundo actual. Muitos tentam
escapar dos outros fechando-se na sua privacidade confortável ou no círculo
reduzido dos mais íntimos, e renunciam ao realismo da dimensão social do
Evangelho. Porque, assim como alguns quiseram um Cristo puramente espiritual,
sem carne nem cruz, também se pretendem relações interpessoais mediadas apenas
por sofisticados aparatos, por ecrãs e sistemas que se podem acender e apagar à
vontade. Entretanto o Evangelho convida-nos sempre a abraçar o risco do
encontro com o rosto do outro, com a sua presença física que interpela, com o
seu sofrimentos e suas reivindicações, com a sua alegria contagiosa
permanecendo lado a lado. A verdadeira fé no Filho de Deus feito carne é
inseparável do dom de si mesmo, da pertença à comunidade, do serviço, da
reconciliação com a carne dos outros. Na sua encarnação, o Filho de Deus
convidou-nos à revolução da ternura.
89. O isolamento, que é uma
concretização do imanentismo, pode exprimir-se numa falsa autonomia que exclui
Deus, mas pode também encontrar na religião uma forma de consumismo espiritual
à medida do próprio individualismo doentio. O regresso ao sagrado e a busca
espiritual, que caracterizam a nossa época. são fenómenos ambíguos. Mais do que
o ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é responder adequadamente à sede
de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com propostas
alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro. Se
não encontram na Igreja uma espiritualidade que os cure, liberte, encha de vida
e de paz, ao mesmo tempo que os chame à comunhão solidária e à fecundidade
missionária, acabarão enganados por propostas que não humanizam nem dão glória
a Deus.
90. As formas próprias da
religiosidade popular são encarnadas, porque brotaram da encarnação da fé
cristã numa cultura popular. Por isso mesmo, incluem uma relação pessoal, não
com energias harmonizadoras, mas com Deus, Jesus Cristo, Maria, um Santo. Têm
carne, têm rostos. Estão aptas para alimentar potencialidades relacionais e não
tanto fugas individualistas. Noutros sectores da nossa sociedade, cresce o
apreço por várias formas de «espiritualidade do bem-estar» sem comunidade, por
uma «teologia da prosperidade» sem compromissos fraternos ou por experiências
subjectivas sem rostos, que se reduzem a uma busca interior imanentista.
91. Um desafio importante é
mostrar que a solução nunca consistirá em escapar de uma relação pessoal e
comprometida com Deus, que ao mesmo tempo nos comprometa com os outros. Isto é
o que se verifica hoje quando os crentes procuram esconder-se e livrar-se dos
outros, e quando subtilmente escapam de um lugar para outro ou de uma tarefa
para outra, sem criar vínculos profundos e estáveis: «A imaginação e mudança de
lugares enganou a muitos». É um remédio falso que faz adoecer o coração e, às
vezes, o corpo. Faz falta ajudar a reconhecer que o único caminho é aprender a
encontrar os demais com a atitude adequada, que é valorizá-los e aceitá-los
como companheiros de estrada, sem resistências interiores. Melhor ainda,
trata-se de aprender a descobrir Jesus no rosto dos outros, na sua voz, nas
suas reivindicações; e aprender também a sofrer, num abraço com Jesus
crucificado, quando recebemos agressões injustas ou ingratidões, sem nos
cansarmos jamais de optar pela fraternidade.
92. Nisto está a verdadeira cura:
de facto, o modo de nos relacionarmos com os outros que, em vez de nos adoecer,
nos cura é uma fraternidade mística, contemplativa, que sabe ver a grandeza
sagrada do próximo, que sabe descobrir Deus em cada ser humano, que sabe
tolerar as moléstias da convivência agarrando-se ao amor de Deus, que sabe
abrir o coração ao amor divino para procurar a felicidade dos outros como a
procura o seu Pai bom. Precisamente nesta época, inclusive onde são um
«pequenino rebanho» (Lc 12, 32), os discípulos do Senhor são chamados a viver
como comunidade que seja sal da terra e luz do mundo (cf. Mt 5, 13-16). São
chamados a testemunhar, de forma sempre nova, uma pertença evangelizadora. Não
deixemos que nos roubem a comunidade!
Não ao mundanismo espiritual
93. O mundanismo espiritual, que
se esconde por detrás de aparências de religiosidade e até mesmo de amor à
Igreja, é buscar, em vez da glória do Senhor, a glória humana e o bem-estar
pessoal. É aquilo que o Senhor censurava aos fariseus: «Como vos é possível
acreditar, se andais à procura da glória uns dos outros, e não procurais a
glória que vem do Deus único?» (Jo 5, 44). É uma maneira subtil de procurar «os
próprios interesses, não os interesses de Jesus Cristo» (Fl 2, 21). Reveste-se
de muitas formas, de acordo com o tipo de pessoas e situações em que penetra.
Por cultivar o cuidado da aparência, nem sempre suscita pecados de domínio
público, pelo que externamente tudo parece correcto. Mas, se invadisse a
Igreja, «seria infinitamente mais desastroso do que qualquer outro mundanismo
meramente moral».
94. Este mundanismo pode
alimentar-se sobretudo de duas maneiras profundamente relacionadas. Uma delas é
o fascínio do gnosticismo, uma fé fechada no subjectivismo, onde apenas
interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios e
conhecimentos que supostamente confortam e iluminam, mas, em última instância,
a pessoa fica enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos seus
sentimentos. A outra maneira é o neopelagianismo auto-referencial e prometeuco
de quem, no fundo, só confia nas suas próprias forças e se sente superior aos
outros por cumprir determinadas normas ou por ser irredutivelmente fiel a um
certo estilo católico próprio do passado. É uma suposta segurança doutrinal ou
disciplinar que dá lugar a um elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez
de evangelizar, se analisam e classificam os demais e, em vez de facilitar o
acesso à graça, consomem-se as energias a controlar. Em ambos os casos, nem
Jesus Cristo nem os outros interessam verdadeiramente. São manifestações dum
imanentismo antropocêntrico. Não é possível imaginar que, destas formas
desvirtuadas do cristianismo, possa brotar um autêntico dinamismo
evangelizador.
95. Este obscuro mundanismo
manifesta-se em muitas atitudes, aparentemente opostas mas com a mesma
pretensão de «dominar o espaço da Igreja». Nalguns, há um cuidado exibicionista
da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, mas não se preocupam que o
Evangelho adquira uma real inserção no povo fiel de Deus e nas necessidades concretas
da história. Assim, a vida da Igreja transforma-se numa peça de museu ou numa
possessão de poucos. Noutros, o próprio mundanismo espiritual esconde-se por
detrás do fascínio de poder mostrar conquistas sociais e políticas, ou numa
vanglória ligada à gestão de assuntos práticos, ou numa atracção pelas
dinâmicas de auto-estima e de realização autoreferencial. Também se pode
traduzir em várias formas de se apresentar a si mesmo envolvido numa densa vida
social cheia de viagens, reuniões, jantares, recepções. Ou então desdobra-se
num funcionalismo empresarial, carregado de estatísticas, planificações e
avaliações, onde o principal beneficiário não é o povo de Deus mas a Igreja
como organização. Em qualquer um dos casos, não traz o selo de Cristo encarnado,
crucificado e ressuscitado, encerra-se em grupos de elite, não sai realmente à
procura dos que andam perdidos nem das imensas multidões sedentas de Cristo. Já
não há ardor evangélico, mas o gozo espúrio duma autocomplacência egocêntrica.
96. Neste contexto, alimenta-se a
vanglória de quantos se contentam com ter algum poder e preferem ser generais
de exércitos derrotados antes que simples soldados dum batalhão que continua a
lutar. Quantas vezes sonhamos planos apostólicos expansionistas, meticulosos e
bem traçados, típicos de generais derrotados! Assim negamos a nossa história de
Igreja, que é gloriosa por ser história de sacrifícios, de esperança, de luta
diária, de vida gasta no serviço, de constância no trabalho fadigoso, porque
todo o trabalho é «suor do nosso rosto». Em vez disso, entretemo-nos vaidosos a
falar sobre «o que se deveria fazer» – o pecado do «deveriaqueísmo» – como
mestres espirituais e peritos de pastoral que dão instruções ficando de fora.
Cultivamos a nossa imaginação sem limites e perdemos o contacto com a dolorosa
realidade do nosso povo fiel.
97. Quem caiu neste mundanismo
olha de cima e de longe, rejeita a profecia dos irmãos, desqualifica quem o
questiona, faz ressaltar constantemente os erros alheios e vive obcecado pela
aparência. Circunscreveu os pontos de referência do coração ao horizonte
fechado da sua imanência e dos seus interesses e, consequentemente, não aprende
com os seus pecados nem está verdadeiramente aberto ao perdão. É uma tremenda
corrupção, com aparências de bem. Devemos evitá-lo, pondo a Igreja em movimento
de saída de si mesma, de missão centrada em Jesus Cristo, de entrega aos
pobres. Deus nos livre de uma Igreja mundana sob vestes espirituais ou
pastorais! Este mundanismo asfixiante cura-se saboreando o ar puro do Espírito
Santo, que nos liberta de estarmos centrados em nós mesmos, escondidos numa
aparência religiosa vazia de Deus. Não deixemos que nos roubem o Evangelho!
Não à guerra entre nós
98. Dentro do povo de Deus e nas
diferentes comunidades, quantas guerras! No bairro, no local de trabalho,
quantas guerras por invejas e ciúmes, mesmo entre cristãos! O mundanismo
espiritual leva alguns cristãos a estar em guerra com outros cristãos que se
interpõem na sua busca pelo poder, prestígio, prazer ou segurança económica.
Além disso, alguns deixam de viver uma adesão cordial à Igreja por alimentar um
espírito de contenda. Mais do que pertencer à Igreja inteira, com a sua rica
diversidade, pertencem a este ou àquele grupo que se sente diferente ou
especial.
99. O mundo está dilacerado pelas
guerras e a violência, ou ferido por um generalizado individualismo que divide
os seres humanos e põe-nos uns contra os outros visando o próprio bem-estar. Em
vários países, ressurgem conflitos e antigas divisões que se pensavam em parte
superados. Aos cristãos de todas as comunidades do mundo, quero pedir-lhes de
modo especial um testemunho de comunhão fraterna, que se torne fascinante e
resplandecente. Que todos possam admirar como vos preocupais uns pelos outros,
como mutuamente vos encorajais animais e ajudais: «Por isto é que todos
conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros» (Jo 13,
35). Foi o que Jesus, com uma intensa oração, Jesus pediu ao Pai: «Que todos
sejam um só (…) em nós [para que] o mundo creia» (Jo 17, 21). Cuidado com a
tentação da inveja! Estamos no mesmo barco e vamos para o mesmo porto! Peçamos
a graça de nos alegrarmos com os frutos alheios, que são de todos.
100. Para quantos estão feridos
por antigas divisões, resulta difícil aceitar que os exortemos ao perdão e à
reconciliação, porque pensam que ignoramos a sua dor ou pretendemos fazer-lhes
perder a memória e os ideais. Mas, se virem o testemunho de comunidades
autenticamente fraternas e reconciliadas, isso é sempre uma luz que atrai. Por
isso me dói muito comprovar como nalgumas comunidades cristãs, e mesmo entre
pessoas consagradas, se dá espaço a várias formas de ódio, divisão, calúnia,
difamação, vingança, ciúme, a desejos de impor as próprias ideias a todo o
custo, e até perseguições que parecem uma implacável caça às bruxas. Quem
queremos evangelizar com estes comportamentos?
101. Peçamos ao Senhor que nos
faça compreender a lei do amor. Que bom é termos esta lei! Como nos faz bem,
apesar de tudo amar-nos uns aos outros! Sim, apesar de tudo! A cada um de nós é
dirigida a exortação de Paulo: «Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal
com o bem» (Rm 12, 21). E ainda: «Não nos cansemos de fazer o bem» (Gal 6, 9).
Todos nós provamos simpatias e antipatias, e talvez neste momento estejamos
chateados com alguém. Pelo menos digamos ao Senhor: «Senhor, estou chateado com
este, com aquela. Peço-Vos por ele e por ela». Rezar pela pessoa com quem
estamos irritados é um belo passo rumo ao amor, e é um acto de evangelização.
Façamo-lo hoje mesmo. Não deixemos que nos roubem o ideal do amor fraterno!
Outros desafios eclesiais
102. A imensa maioria do povo de
Deus é constituída por leigos. Ao seu serviço, está uma minoria: os ministros
ordenados. Cresceu a consciência da identidade e da missão dos leigos na
Igreja. Embora não suficiente, pode-se contar com um numeroso laicado, dotado
de um arreigado sentido de comunidade e uma grande fidelidade ao compromisso da
caridade, da catequese, da celebração da fé. Mas, a tomada de consciência desta
responsabilidade laical que nasce do Baptismo e da Confirmação não se manifesta
de igual modo em toda a parte; nalguns casos, porque não se formaram para
assumir responsabilidades importantes, noutros por não encontrar espaço nas
suas Igrejas particulares para poderem exprimir-se e agir por causa dum
excessivo clericalismo que os mantém à margem das decisões. Apesar de se notar
uma maior participação de muitos nos ministérios laicais, este compromisso não
se reflecte na penetração dos valores cristãos no mundo social, político e
económico; limita-se muitas vezes às tarefas no seio da Igreja, sem um
empenhamento real pela aplicação do Evangelho na transformação da sociedade. A
formação dos leigos e a evangelização das categorias profissionais e
intelectuais constituem um importante desafio pastoral.
103. A Igreja reconhece a
indispensável contribuição da mulher na sociedade, com uma sensibilidade, uma
intuição e certas capacidades peculiares, que habitualmente são mais próprias
das mulheres que dos homens. Por exemplo, a especial solicitude feminina pelos
outros, que se exprime de modo particular, mas não exclusivamente, na
maternidade. Vejo, com prazer, como muitas mulheres partilham responsabilidades
pastorais juntamente com os sacerdotes, contribuem para o acompanhamento de
pessoas, famílias ou grupos e prestam novas contribuições para a reflexão
teológica. Mas ainda é preciso ampliar os espaços para uma presença feminina
mais incisiva na Igreja. Porque «o génio feminino é necessário em todas as
expressões da vida social; por isso deve ser garantida a presença das mulheres
também no âmbito do trabalho» e nos vários lugares onde se tomam as decisões
importantes, tanto na Igreja como nas estruturas sociais.
104. As reivindicações dos
legítimos direitos das mulheres, a partir da firme convicção de que homens e
mulheres têm a mesma dignidade, colocam à Igreja questões profundas que a
desafiam e não se podem iludir superficialmente. O sacerdócio reservado aos
homens, como sinal de Cristo Esposo que Se entrega na Eucaristia, é uma questão
que não se põe em discussão, mas pode tornar-se particularmente controversa se
se identifica demasiado a potestade sacramental com o poder. Não se esqueça
que, quando falamos da potestade sacerdotal, «estamos na esfera da função e não
na da dignidade e da santidade». O sacerdócio ministerial é um dos meios que
Jesus utiliza ao serviço do seu povo, mas a grande dignidade vem do Baptismo,
que é acessível a todos. A configuração do sacerdote com Cristo Cabeça – isto
é, como fonte principal da graça – não comporta uma exaltação que o coloque por
cima dos demais. Na Igreja, as funções «não dão justificação à superioridade de
uns sobre os outros». Com efeito, uma mulher, Maria, é mais importante do que
os Bispos. Mesmo quando a função do sacerdócio ministerial é considerada
«hierárquica», há que ter bem presente que «se ordena integralmente à santidade
dos membros do corpo místico de Cristo». A sua pedra de fecho e o seu fulcro
não são o poder entendido como domínio, mas a potestade de administrar o
sacramento da Eucaristia; daqui deriva a sua autoridade, que é sempre um
serviço ao povo. Aqui está um grande desafio para os Pastores e para os
teólogos, que poderiam ajudar a reconhecer melhor o que isto implica no que se
refere ao possível lugar das mulheres onde se tomam decisões importantes, nos
diferentes âmbitos da Igreja.
105. A pastoral juvenil, tal como
estávamos habituados a desenvolvê-la, sofreu o impacto das mudanças sociais.
Nas estruturas ordinárias, os jovens habitualmente não encontram respostas para
as suas preocupações, necessidades, problemas e feridas. A nós, adultos,
custa-nos ouvi-los com paciência, compreender as suas preocupações ou as suas
reivindicações, e aprender a falar-lhes na linguagem que eles entendem. Pela
mesma razão, as propostas educacionais não produzem os frutos esperados. A
proliferação e o crescimento de associações e movimentos predominantemente
juvenis podem ser interpretados como uma acção do Espírito que abre caminhos
novos em sintonia com as suas expectativas e a busca de espiritualidade
profunda e dum sentido mais concreto de pertença. Todavia é necessário tornar
mais estável a participação destas agregações no âmbito da pastoral de conjunto
da Igreja.
106. Embora nem sempre seja fácil
abordar os jovens, houve crescimento em dois aspectos: a consciência de que
toda a comunidade os evangeliza e educa, e a urgência de que eles tenham um
protagonismo maior. Deve-se reconhecer que, no actual contexto de crise do
compromisso e dos laços comunitários, são muitos os jovens que se solidarizam
contra os males do mundo, aderindo a várias formas de militância e
voluntariado. Alguns participam na vida da Igreja, integram grupos de serviço e
diferentes iniciativas missionárias nas suas próprias dioceses ou noutros lugares.
Como é bom que os jovens sejam «caminheiros da fé», felizes por levarem Jesus
Cristo a cada esquina, a cada praça, a cada canto da terra!
107. Em muitos lugares, há
escassez de vocações ao sacerdócio e à vida consagrada. Frequentemente isso
fica-se a dever à falta de ardor apostólico contagioso nas comunidades, pelo
que estas não entusiasmam nem fascinam. Onde há vida, fervor, paixão de levar
Cristo aos outros, surgem vocações genuínas. Mesmo em paróquias onde os
sacerdotes não são muito disponíveis nem alegres, é a vida fraterna e fervorosa
da comunidade que desperta o desejo de se consagrar inteiramente a Deus e à
evangelização, especialmente se essa comunidade vivente reza insistentemente
pelas vocações e tem a coragem de propor aos seus jovens um caminho de especial
consagração. Por outro lado, apesar da escassez vocacional, hoje temos noção
mais clara da necessidade de melhor selecção dos candidatos ao sacerdócio. Não
se podem encher os seminários com qualquer tipo de motivações, e menos ainda se
estas estão relacionadas com insegurança afectiva, busca de formas de poder,
glória humana ou bem-estar económico.
108. Como já disse, não pretendi
oferecer um diagnóstico completo, mas convido as comunidades a completarem e a
enriquecerem estas perspectivas a partir da consciência dos desafios próprios e
das comunidades vizinhas. Espero que, ao fazê-lo, tenham em conta que, todas as
vezes que intentamos ler os sinais dos tempos na realidade actual, é
conveniente ouvir os jovens e os idosos. Tanto uns como outros são a esperança
dos povos. Os idosos fornecem a memória e a sabedoria da experiência, que
convida a não repetir tontamente os mesmos erros do passado. Os jovens
chamam-nos a despertar e a aumentar a esperança, porque trazem consigo as novas
tendências da humanidade e abrem-nos ao futuro, de modo que não fiquemos
encalhados na nostalgia de estruturas e costumes que já não são fonte de vida
no mundo actual.
109. Os desafios existem para ser
superados. Sejamos realistas, mas sem perder a alegria, a audácia e a dedicação
cheia de esperança. Não deixemos que nos roubem a força missionária!
Capítulo III
O ANÚNCIO DO EVANGELHO
110. Depois de considerar alguns
desafios da realidade actual, quero agora recordar o dever que incumbe sobre
nós em toda e qualquer época e lugar, porque «não pode haver verdadeira
evangelização sem o anúncio explícito de Jesus como Senhor» e sem existir uma
«primazia do anúncio de Jesus Cristo em qualquer trabalho de evangelização».
Recolhendo as preocupações dos Bispos asiáticos, João Paulo II afirmou que, se
a Igreja «deve realizar o seu destino providencial, então uma evangelização
entendida como o jubiloso, paciente e progressivo anúncio da Morte salvífica e
Ressurreição de Jesus Cristo há-de ser a vossa prioridade absoluta». Isto é válido
para todos.
1. Todo o povo de Deus anuncia o
Evangelho
111. A evangelização é dever da
Igreja. Este sujeito da evangelização, porém, é mais do que uma instituição
orgânica e hierárquica; é, antes de tudo, um povo que peregrina para Deus.
Trata-se certamente de um mistério que mergulha as raízes na Trindade, mas tem
a sua concretização histórica num povo peregrino e evangelizador, que sempre
transcende toda a necessária expressão institucional. Proponho que nos
detenhamos um pouco nesta forma de compreender a Igreja, que tem o seu
fundamento último na iniciativa livre e gratuita de Deus.
Um povo para todos
112. A salvação, que Deus nos
oferece, é obra da sua misericórdia. Não há acção humana, por melhor que seja,
que nos faça merecer tão grande dom. Por pura graça, Deus atrai-nos para nos
unir a Si. Envia o seu Espírito aos nossos corações, para nos fazer seus
filhos, para nos transformar e tornar capazes de responder com a nossa vida ao
seu amor. A Igreja é enviada por Jesus Cristo como sacramento da salvação
oferecida por Deus. Através da sua acção evangelizadora, ela colabora como
instrumento da graça divina, que opera incessantemente para além de toda e
qualquer possível supervisão. Bem o exprimiu Bento XVI, ao abrir as reflexões
do Sínodo: «É sempre importante saber que a primeira palavra, a iniciativa
verdadeira, a actividade verdadeira vem de Deus e só inserindo-nos nesta
iniciativa divina, só implorando esta iniciativa divina, nos podemos tornar
também – com Ele e n'Ele – evangelizadores». O princípio da primazia da graça
deve ser um farol que ilumine constantemente as nossas reflexões sobre a
evangelização.
113. Esta salvação, que Deus
realiza e a Igreja jubilosamente anuncia, é para todos, e Deus criou um caminho
para Se unir a cada um dos seres humanos de todos os tempos. Escolheu
convocá-los como povo, e não como seres isolados. Ninguém se salva sozinho,
isto é, nem como indivíduo isolado, nem por suas próprias forças. Deus
atrai-nos, no respeito da complexa trama de relações interpessoais que a vida
numa comunidade humana supõe. Este povo, que Deus escolheu para Si e convocou,
é a Igreja. Jesus não diz aos Apóstolos para formarem um grupo exclusivo, um
grupo de elite. Jesus diz: «Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos» (Mt
28, 19). São Paulo afirma que no povo de Deus, na Igreja, «não há judeu nem
grego (...), porque todos sois um só em Cristo Jesus» (Gal 3, 28). Eu gostaria
de dizer àqueles que se sentem longe de Deus e da Igreja, aos que têm medo ou
aos indiferentes: o Senhor também te chama para seres parte do seu povo, e
fá-lo com grande respeito e amor!
114. Ser Igreja significa ser
povo de Deus, de acordo com o grande projecto de amor do Pai. Isto implica ser
o fermento de Deus no meio da humanidade; quer dizer anunciar e levar a salvação
de Deus a este nosso mundo, que muitas vezes se sente perdido, necessitado de
ter respostas que encorajem, dêem esperança e novo vigor para o caminho. A
Igreja deve ser o lugar da misericórdia gratuita, onde todos possam sentir-se
acolhidos, amados, perdoados e animados a viverem segundo a vida boa do
Evangelho.
Um povo com muitos rostos
115. Este Povo de Deus encarna-se
nos povos da Terra, cada um dos quais tem a sua cultura própria. A noção de
cultura é um instrumento precioso para compreender as diversas expressões da
vida cristã que existem no povo de Deus. Trata-se do estilo de vida que uma
determinada sociedade possui, da forma peculiar que têm os seus membros de se
relacionar entre si, com as outras criaturas e com Deus. Assim entendida, a cultura
abrange a totalidade da vida dum povo. Cada povo, na sua evolução histórica,
desenvolve a própria cultura com legítima autonomia. Isso fica-se a dever ao
facto de que a pessoa humana, «por sua natureza, necessita absolutamente da
vida social» e mantém contínua referência à sociedade, na qual vive uma maneira
concreta de se relacionar com a realidade. O ser humano está sempre
culturalmente situado: «natureza e cultura encontram-se intimamente ligadas». A
graça supõe a cultura, e o dom de Deus encarna-se na cultura de quem o recebe.
116. Ao longo destes dois
milénios de cristianismo, uma quantidade inumerável de povos recebeu a graça da
fé, fê-la florir na sua vida diária e transmitiu-a segundo as próprias
modalidades culturais. Quando uma comunidade acolhe o anúncio da salvação, o
Espírito Santo fecunda a sua cultura com a força transformadora do Evangelho. E
assim, como podemos ver na história da Igreja, o cristianismo não dispõe de um
único modelo cultural, mas «permanecendo o que é, na fidelidade total ao
anúncio evangélico e à tradição da Igreja, o cristianismo assumirá também o
rosto das diversas culturas e dos vários povos onde for acolhido e se radicar».
Nos diferentes povos, que experimentam o dom de Deus segundo a própria cultura,
a Igreja exprime a sua genuína catolicidade e mostra «a beleza deste rosto
pluriforme». Através das manifestações cristãs dum povo evangelizado, o
Espírito Santo embeleza a Igreja, mostrando-lhe novos aspectos da Revelação e
presenteando-a com um novo rosto. Pela inculturação, a Igreja «introduz os
povos com as suas culturas na sua própria comunidade», porque «cada cultura
oferece formas e valores positivos que podem enriquecer o modo como o Evangelho
é pregado, compreendido e vivido». Assim, «a Igreja, assumindo os valores das
diversas culturas, torna-se sponsa ornata monilibus suis, a noiva que se adorna
com suas jóias (cf. Is 61, 10)».
117. Se for bem entendida, a
diversidade cultural não ameaça a unidade da Igreja. É o Espírito Santo,
enviado pelo Pai e o Filho, que transforma os nossos corações e nos torna
capazes de entrar na comunhão perfeita da Santíssima Trindade, onde tudo
encontra a sua unidade. O Espírito Santo constrói a comunhão e a harmonia do
povo de Deus. Ele mesmo é a harmonia, tal como é o vínculo de amor entre o Pai
e o Filho. É Ele que suscita uma abundante e diversificada riqueza de dons e,
ao mesmo tempo, constrói uma unidade que nunca é uniformidade, mas multiforme
harmonia que atrai. A evangelização reconhece com alegria estas múltiplas
riquezas que o Espírito gera na Igreja. Não faria justiça à lógica da
encarnação pensar num cristianismo monocultural e monocórdico. É verdade que
algumas culturas estiveram intimamente ligadas à pregação do Evangelho e ao
desenvolvimento do pensamento cristão, mas a mensagem revelada não se
identifica com nenhuma delas e possui um conteúdo transcultural. Por isso, na
evangelização de novas culturas ou de culturas que não acolheram a pregação
cristã, não é indispensável impor uma determinada forma cultural, por mais bela
e antiga que seja, juntamente com a proposta do Evangelho. A mensagem, que
anunciamos, sempre apresenta alguma roupagem cultural, mas às vezes, na Igreja,
caímos na vaidosa sacralização da própria cultura, o que pode mostrar mais
fanatismo do que autêntico ardor evangelizador.
118. Os Bispos da Oceânia pediram
que a Igreja neste continente «desenvolva uma compreensão e exposição da
verdade de Cristo partindo das tradições e culturas locais», e instaram todos
os missionários «a trabalhar de harmonia com os cristãos indígenas para
garantir que a doutrina e a vida da Igreja sejam expressas em formas legítimas
e apropriadas a cada cultura». Não podemos pretender que todos os povos dos
vários continentes, ao exprimir a fé cristã, imitem as modalidades adoptadas pelos
povos europeus num determinado momento da história, porque a fé não se pode
confinar dentro dos limites de compreensão e expressão duma cultura. É
indiscutível que uma única cultura não esgota o mistério da redenção de Cristo.
Todos somos discípulos
missionários
119. Em todos os baptizados,
desde o primeiro ao último, actua a força santificadora do Espírito que impele
a evangelizar. O povo de Deus é santo em virtude desta unção, que o torna
infalível «in credendo», ou seja, ao crer, não pode enganar-se, ainda que não
encontre palavras para explicar a sua fé. O Espírito guia-o na verdade e
condu-lo à salvação. Como parte do seu mistério de amor pela humanidade, Deus
dota a totalidade dos fiéis com um instinto da fé – o sensus fidei – que os
ajuda a discernir o que vem realmente de Deus. A presença do Espírito confere
aos cristãos uma certa conaturalidade com as realidades divinas e uma sabedoria
que lhes permite captá-las intuitivamente, embora não possuam os meios
adequados para expressá-las com precisão.
120. Em virtude do Baptismo
recebido, cada membro do povo de Deus tornou-se discípulo missionário (cf. Mt
28, 19). Cada um dos baptizados, independentemente da própria função na Igreja
e do grau de instrução da sua fé, é um sujeito activo de evangelização, e seria
inapropriado pensar num esquema de evangelização realizado por agentes
qualificados enquanto o resto do povo fiel seria apenas receptor das suas
acções. A nova evangelização deve implicar um novo protagonismo de cada um dos
baptizados. Esta convicção transforma-se num apelo dirigido a cada cristão para
que ninguém renuncie ao seu compromisso de evangelização, porque, se uma pessoa
experimentou verdadeiramente o amor de Deus que o salva, não precisa de muito
tempo de preparação para sair a anunciá-lo, não pode esperar que lhe dêem
muitas lições ou longas instruções. Cada cristão é missionário na medida em que
se encontrou com o amor de Deus em Cristo Jesus; não digamos mais que somos
«discípulos» e «missionários», mas sempre que somos «discípulos missionários».
Se não estivermos convencidos disto, olhemos para os primeiros discípulos, que
logo depois de terem conhecido o olhar de Jesus, saíram proclamando cheios de
alegria: «Encontrámos o Messias» (Jo 1, 41). A Samaritana, logo que terminou o
seu diálogo com Jesus, tornou-se missionária, e muitos samaritanos acreditaram
em Jesus «devido às palavras da mulher» (Jo 4, 39). Também São Paulo, depois do
seu encontro com Jesus Cristo, «começou imediatamente a proclamar (…) que Jesus
era o Filho de Deus» (Act 9, 20). Porque esperamos nós?
121. Certamente todos somos
chamados a crescer como evangelizadores. Devemos procurar simultaneamente uma
melhor formação, um aprofundamento do nosso amor e um testemunho mais claro do
Evangelho. Neste sentido, todos devemos deixar que os outros nos evangelizem
constantemente; isto não significa que devemos renunciar à missão
evangelizadora, mas encontrar o modo de comunicar Jesus que corresponda à
situação em que vivemos. Seja como for, todos somos chamados a dar aos outros o
testemunho explícito do amor salvífico do Senhor, que, sem olhar às nossas
imperfeições, nos oferece a sua proximidade, a sua Palavra, a sua força, e dá
sentido à nossa vida. O teu coração sabe que a vida não é a mesma coisa sem
Ele; pois bem, aquilo que descobriste, o que te ajuda a viver e te dá
esperança, isso é o que deves comunicar aos outros. A nossa imperfeição não
deve ser desculpa; pelo contrário, a missão é um estímulo constante para não
nos acomodarmos na mediocridade, mas continuarmos a crescer. O testemunho de
fé, que todo o cristão é chamado a oferecer, implica dizer como São Paulo: «Não
que já o tenha alcançado ou já seja perfeito; mas corro para ver se o alcanço,
(…) lançando-me para o que vem à frente» (Fl 3, 12-13).
A força evangelizadora da piedade
popular
122. Da mesma forma, podemos
pensar que os diferentes povos, nos quais foi inculturado o Evangelho, são
sujeitos colectivos activos, agentes da evangelização. Assim é, porque cada
povo é o criador da sua cultura e o protagonista da sua história. A cultura é
algo de dinâmico, que um povo recria constantemente, e cada geração transmite à
seguinte um conjunto de atitudes relativas às diversas situações existenciais,
que esta nova geração deve reelaborar face aos próprios desafios. O ser humano
«é simultaneamente filho e pai da cultura onde está inserido». Quando o
Evangelho se inculturou num povo, no seu processo de transmissão cultural
também transmite a fé de maneira sempre nova; daí a importância da
evangelização entendida como inculturação. Cada porção do povo de Deus, ao
traduzir na vida o dom de Deus segundo a sua índole própria, dá testemunho da
fé recebida e enriquece-a com novas expressões que falam por si. Pode dizer-se
que «o povo se evangeliza continuamente a si mesmo». Aqui ganha importância a
piedade popular, verdadeira expressão da actividade missionária espontânea do
povo de Deus. Trata-se de uma realidade em permanente desenvolvimento, cujo
protagonista é o Espírito Santo.
123. Na piedade popular, pode-se
captar a modalidade em que a fé recebida se encarnou numa cultura e continua a
transmitir-se. Vista por vezes com desconfiança, a piedade popular foi objecto
de revalorização nas décadas posteriores ao Concílio. Quem deu um impulso
decisivo nesta direcção, foi Paulo VI na sua Exortação Apostólica Evangelii
Nuntiandi. Nela explica que a piedade popular «traduz em si uma certa sede de
Deus, que somente os pobres e os simples podem experimentar» e «torna as
pessoas capazes para terem rasgos de generosidade e predispõe-nas para o
sacrifício até ao heroísmo, quando se trata de manifestar a fé». Já mais perto
dos nossos dias, Bento XVI, na América Latina, assinalou que se trata de um
«precioso tesouro da Igreja Católica» e que nela «aparece a alma dos povos
latino-americanos».
124. No Documento de Aparecida,
descrevem-se as riquezas que o Espírito Santo explicita na piedade popular por
sua iniciativa gratuita. Naquele amado Continente, onde uma multidão imensa de
cristãos exprime a sua fé através da piedade popular, os Bispos chamam-na
também «espiritualidade popular» ou «mística popular». Trata-se de uma
verdadeira «espiritualidade encarnada na cultura dos simples». Não é vazia de
conteúdos, mas descobre-os e exprime-os mais pela via simbólica do que pelo uso
da razão instrumental e, no acto de fé, acentua mais o credere in Deum que o
credere Deum. É «uma maneira legítima de viver a fé, um modo de se sentir parte
da Igreja e uma forma de ser missionários»; comporta a graça da
missionariedade, do sair de si e do peregrinar: «O caminhar juntos para os
santuários e o participar em outras manifestações da piedade popular, levando
também os filhos ou convidando a outras pessoas, é em si mesmo um gesto
evangelizador». Não coarctemos nem pretendamos controlar esta força
missionária!
125. Para compreender esta
necessidade, é preciso abordá-la com o olhar do Bom Pastor, que não procura
julgar mas amar. Só a partir da conaturalidade afectiva que dá o amor é que
podemos apreciar a vida teologal presente na piedade dos povos cristãos,
especialmente nos pobres. Penso na fé firme das mães ao pé da cama do filho
doente, que se agarram a um terço ainda que não saibam elencar os artigos do
Credo; ou na carga imensa de esperança contida numa vela que se acende, numa
casa humilde, para pedir ajuda a Maria, ou nos olhares de profundo amor a
Cristo crucificado. Quem ama o povo fiel de Deus, não pode ver estas acções
unicamente como uma busca natural da divindade; são a manifestação duma vida
teologal animada pela acção do Espírito Santo, que foi derramado em nossos
corações (cf. Rm 5, 5).
126. Na piedade popular, por ser
fruto do Evangelho inculturado, subjaz uma força activamente evangelizadora que
não podemos subestimar: seria ignorar a obra do Espírito Santo. Ao contrário,
somos chamados a encorajá-la e fortalecê-la para aprofundar o processo de
inculturação, que é uma realidade nunca acabada. As expressões da piedade
popular têm muito que nos ensinar e, para quem as sabe ler, são um lugar
teológico a que devemos prestar atenção particularmente na hora de pensar a
nova evangelização.
De pessoa a pessoa
127. Hoje que a Igreja deseja
viver uma profunda renovação missionária, há uma forma de pregação que nos
compete a todos como tarefa diária: é cada um levar o Evangelho às pessoas com
quem se encontra, tanto aos mais íntimos como aos desconhecidos. É a pregação
informal que se pode realizar durante uma conversa, e é também a que realiza um
missionário quando visita um lar. Ser discípulo significa ter a disposição
permanente de levar aos outros o amor de Jesus; e isto sucede espontaneamente
em qualquer lugar: na rua, na praça, no trabalho, num caminho.
128. Nesta pregação, sempre
respeitosa e amável, o primeiro momento é um diálogo pessoal, no qual a outra
pessoa se exprime e partilha as suas alegrias, as suas esperanças, as
preocupações com os seus entes queridos e muitas coisas que enchem o coração.
Só depois desta conversa é que se pode apresentar-lhe a Palavra, seja pela
leitura de algum versículo ou de modo narrativo, mas sempre recordando o
anúncio fundamental: o amor pessoal de Deus que Se fez homem, entregou-Se a Si
mesmo por nós e, vivo, oferece a sua salvação e a sua amizade. É o anúncio que
se partilha com uma atitude humilde e testemunhal de quem sempre sabe aprender,
com a consciência de que esta mensagem é tão rica e profunda que sempre nos
ultrapassa. Umas vezes exprime-se de maneira mais directa, outras através dum
testemunho pessoal, uma história, um gesto, ou outra forma que o próprio
Espírito Santo possa suscitar numa circunstância concreta. Se parecer prudente
e houver condições, é bom que este encontro fraterno e missionário conclua com
uma breve oração que se relacione com as preocupações que a pessoa manifestou.
Assim ela sentirá mais claramente que foi ouvida e interpretada, que a sua situação
foi posta nas mãos de Deus, e reconhecerá que a Palavra de Deus fala realmente
à sua própria vida.
129. Contudo não se deve pensar
que o anúncio evangélico tenha de ser transmitido sempre com determinadas
fórmulas pré-estabelecidas ou com palavras concretas que exprimam um conteúdo
absolutamente invariável. Transmite-se com formas tão diversas que seria
impossível descrevê-las ou catalogá-las, e cujo sujeito colectivo é o povo de
Deus com seus gestos e sinais inumeráveis. Por conseguinte, se o Evangelho se
encarnou numa cultura, já não se comunica apenas através do anúncio de pessoa a
pessoa. Isto deve fazer-nos pensar que, nos países onde o cristianismo é
minoria, para além de animar cada baptizado a anunciar o Evangelho, as Igrejas
particulares hão-de promover activamente formas, pelo menos incipientes, de
inculturação. Enfim, o que se deve procurar é que a pregação do Evangelho,
expressa com categorias próprias da cultura onde é anunciado, provoque uma nova
síntese com essa cultura. Embora estes processos sejam sempre lentos, às vezes
o medo paralisa-nos demasiado. Se deixamos que as dúvidas e os medos sufoquem
toda a ousadia, é possível que, em vez de sermos criativos, nos deixemos
simplesmente ficar cómodos sem provocar qualquer avanço e, neste caso, não
seremos participantes dos processos históricos com a nossa cooperação, mas
simplesmente espectadores duma estagnação estéril da Igreja.
Carismas ao serviço da comunhão
evangelizadora
130. O Espírito Santo enriquece
toda a Igreja evangelizadora também com diferentes carismas. São dons para
renovar e edificar a Igreja. Não se trata de um património fechado, entregue a
um grupo para que o guarde; mas são presentes do Espírito integrados no corpo
eclesial, atraídos para o centro que é Cristo, donde são canalizados num
impulso evangelizador. Um sinal claro da autenticidade dum carisma é a sua
eclesialidade, a sua capacidade de se integrar harmoniosamente na vida do povo
santo de Deus para o bem de todos. Uma verdadeira novidade suscitada pelo
Espírito não precisa de fazer sombra sobre outras espiritualidades e dons para
se afirmar a si mesma. Quanto mais um carisma dirigir o seu olhar para o
coração do Evangelho, tanto mais eclesial será o seu exercício. É na comunhão,
mesmo que seja fadigosa, que um carisma se revela autêntica e misteriosamente
fecundo. Se vive este desafio, a Igreja pode ser um modelo para a paz no mundo.
131. As diferenças entre as
pessoas e as comunidades por vezes são incómodas, mas o Espírito Santo, que
suscita esta diversidade, de tudo pode tirar algo de bom e transformá-lo em
dinamismo evangelizador que actua por atracção. A diversidade deve ser sempre
conciliada com a ajuda do Espírito Santo; só Ele pode suscitar a diversidade, a
pluralidade, a multiplicidade e, ao mesmo tempo, realizar a unidade. Ao invés,
quando somos nós que pretendemos a diversidade e nos fechamos em nossos
particularismos, em nossos exclusivismos, provocamos a divisão; e, por outro
lado, quando somos nós que queremos construir a unidade com os nossos planos
humanos, acabamos por impor a uniformidade, a homologação. Isto não ajuda a
missão da Igreja.
Cultura, pensamento e educação
132. O anúncio às culturas
implica também um anúncio às culturas profissionais, científicas e académicas.
É o encontro entre a fé, a razão e as ciências, que visa desenvolver um novo
discurso sobre a credibilidade, uma apologética original que ajude a criar as
predisposições para que o Evangelho seja escutado por todos. Quando algumas
categorias da razão e das ciências são acolhidas no anúncio da mensagem, tais
categorias tornam-se instrumentos de evangelização; é a água transformada em
vinho. É aquilo que, uma vez assumido, não só é redimido, mas torna-se
instrumento do Espírito para iluminar e renovar o mundo.
133. Uma vez que não basta a preocupação
do evangelizador por chegar a cada pessoa, mas o Evangelho também se anuncia às
culturas no seu conjunto, a teologia – e não só a teologia pastoral – em
diálogo com outras ciências e experiências humanas tem grande importância para
pensar como fazer chegar a proposta do Evangelho à variedade dos contextos
culturais e dos destinatários. A Igreja, comprometida na evangelização, aprecia
e encoraja o carisma dos teólogos e o seu esforço na investigação teológica,
que promove o diálogo com o mundo da cultura e da ciência. Faço apelo aos
teólogos para que cumpram este serviço como parte da missão salvífica da
Igreja. Mas, para isso, é necessário que tenham a peito a finalidade
evangelizadora da Igreja e da própria teologia, e não se contentem com uma teologia
de gabinete.
134. As universidades são um
âmbito privilegiado para pensar e desenvolver este compromisso de evangelização
de modo interdisciplinar e inclusivo. As escolas católicas, que sempre procuram
conjugar a tarefa educacional com o anúncio explícito do Evangelho, constituem
uma contribuição muito válida para a evangelização da cultura, mesmo em países
e cidades onde uma situação adversa nos incentiva a usar a nossa criatividade
para se encontrar os caminhos adequados.
2. A homilia
135. Consideremos agora a
pregação dentro da Liturgia, que requer uma séria avaliação por parte dos
Pastores. Deter-me-ei particularmente, e até com certa meticulosidade, na
homilia e sua preparação, porque são muitas as reclamações relacionadas com
este ministério importante, e não podemos fechar os ouvidos. A homilia é o
ponto de comparação para avaliar a proximidade e a capacidade de encontro de um
Pastor com o seu povo. De facto, sabemos que os fiéis lhe dão muita
importância; e, muitas vezes, tanto eles como os próprios ministros ordenados
sofrem: uns a ouvir e os outros a pregar. É triste que assim seja. A homilia
pode ser, realmente, uma experiência intensa e feliz do Espírito, um consolador
encontro com a Palavra, uma fonte constante de renovação e crescimento.
136. Renovemos a nossa confiança
na pregação, que se funda na convicção de que é Deus que deseja alcançar os
outros através do pregador e de que Ele mostra o seu poder através da palavra
humana. São Paulo fala vigorosamente sobre a necessidade de pregar, porque o
Senhor quis chegar aos outros por meio também da nossa palavra (cf. Rm 10,
14-17). Com a palavra, Nosso Senhor conquistou o coração da gente. De todas as
partes, vinham para O ouvir (cf. Mc 1, 45). Ficavam maravilhados, «bebendo» os
seus ensinamentos (cf. Mc 6, 2). Sentiam que lhes falava como quem tem
autoridade (cf. Mc 1, 27). E os Apóstolos, que Jesus estabelecera «para estarem
com Ele e para os enviar a pregar» (Mc 3, 14), atraíram para o seio da Igreja
todos os povos com a palavra (cf. Mc 16, 15.20).
O contexto litúrgico
137. Agora é oportuno recordar
que «a proclamação litúrgica da Palavra de Deus, principalmente no contexto da
assembleia eucarística, não é tanto um momento de meditação e de catequese,
como sobretudo o diálogo de Deus com o seu povo, no qual se proclamam as
maravilhas da salvação e se propõem continuamente as exigências da Aliança».
Reveste-se de um valor especial a homilia, derivado do seu contexto
eucarístico, que supera toda a catequese por ser o momento mais alto do diálogo
entre Deus e o seu povo, antes da comunhão sacramental. A homilia é um retomar
este diálogo que já está estabelecido entre o Senhor e o seu povo. Aquele que
prega deve conhecer o coração da sua comunidade para identificar onde está vivo
e ardente o desejo de Deus e também onde é que este diálogo de amor foi
sufocado ou não pôde dar fruto.
138. A homilia não pode ser um
espectáculo de divertimento, não corresponde à lógica dos recursos mediáticos,
mas deve dar fervor e significado à celebração. É um género peculiar, já que se
trata de uma pregação no quadro duma celebração litúrgica; por conseguinte,
deve ser breve e evitar que se pareça com uma conferência ou uma lição. O
pregador pode até ser capaz de manter vivo o interesse das pessoas por uma
hora, mas assim a sua palavra torna-se mais importante que a celebração da fé.
Se a homilia se prolonga demasiado, lesa duas características da celebração
litúrgica: a harmonia entre as suas partes e o seu ritmo. Quando a pregação se
realiza no contexto da Liturgia, incorpora-se como parte da oferenda que se
entrega ao Pai e como mediação da graça que Cristo derrama na celebração. Este
mesmo contexto exige que a pregação oriente a assembleia, e também o pregador,
para uma comunhão com Cristo na Eucaristia, que transforme a vida. Isto requer
que a palavra do pregador não ocupe um lugar excessivo, para que o Senhor
brilhe mais que o ministro.
A conversa da mãe
139. Dissemos que o povo de Deus,
pela acção constante do Espírito nele, se evangeliza continuamente a si mesmo.
Que implicações tem esta convicção para o pregador? Lembra-nos que a Igreja é
mãe e prega ao povo como uma mãe fala ao seu filho, sabendo que o filho tem
confiança de que tudo o que se lhe ensina é para seu bem, porque se sente
amado. Além disso, a boa mãe sabe reconhecer tudo o que Deus semeou no seu
filho, escuta as suas preocupações e aprende com ele. O espírito de amor que
reina numa família guia tanto a mãe como o filho nos seus diálogos, nos quais
se ensina e aprende, se corrige e valoriza o que é bom; assim deve acontecer
também na homilia. O Espírito que inspirou os Evangelhos e actua no povo de
Deus, inspira também como se deve escutar a fé do povo e como se deve pregar em
cada Eucaristia. Portanto a pregação cristã encontra, no coração da cultura do
povo, um manancial de água viva tanto para saber o que se deve dizer como para
encontrar o modo mais apropriado para o dizer. Assim como todos gostamos que
nos falem na nossa língua materna, assim também, na fé, gostamos que nos falem
em termos da «cultura materna», em termos do idioma materno (cf. 2 Mac 7,
21.27), e o coração dispõe-se a ouvir melhor. Esta linguagem é uma tonalidade
que transmite coragem, inspiração, força, impulso.
140. Este âmbito
materno-eclesial, onde se desenrola o diálogo do Senhor com o seu povo, deve
ser encarecido e cultivado através da proximidade cordial do pregador, do tom
caloroso da sua voz, da mansidão do estilo das suas frases, da alegria dos seus
gestos. Mesmo que às vezes a homilia seja um pouco maçante, se houver este
espírito materno-eclesial, será sempre fecunda, tal como os conselhos maçantes
duma mãe, com o passar do tempo, dão fruto no coração dos filhos.
141. Ficamos admirados com os
recursos empregues pelo Senhor para dialogar com o seu povo, revelar o seu
mistério a todos, cativar a gente comum com ensinamentos tão elevados e
exigentes. Creio que o segredo de Jesus esteja escondido naquele seu olhar o
povo mais além das suas fraquezas e quedas: «Não temais, pequenino rebanho,
porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o Reino» (Lc 12, 32); Jesus prega com este
espírito. Transbordando de alegria no Espírito, bendiz o Pai por Lhe atrair os
pequeninos: «Bendigo-Te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste
estas coisas aos sábios e aos inteligentes e as revelaste aos pequeninos» (Lc
10, 21). O Senhor compraz-Se verdadeiramente em dialogar com o seu povo, e
compete ao pregador fazer sentir este gosto do Senhor ao seu povo.
Palavras que abrasam os corações
142. Um diálogo é muito mais do
que a comunicação duma verdade. Realiza-se pelo prazer de falar e pelo bem
concreto que se comunica através das palavras entre aqueles que se amam. É um
bem que não consiste em coisas, mas nas próprias pessoas que mutuamente se dão
no diálogo. A pregação puramente moralista ou doutrinadora e também a que se
transforma numa lição de exegese reduzem esta comunicação entre os corações que
se verifica na homilia e que deve ter um carácter quase sacramental: «A fé
surge da pregação, e a pregação surge pela palavra de Cristo» (Rm 10, 17). Na
homilia, a verdade anda de mãos dadas com a beleza e o bem. Não se trata de
verdades abstractas ou de silogismos frios, porque se comunica também a beleza
das imagens que o Senhor utilizava para incentivar a prática do bem. A memória
do povo fiel, como a de Maria, deve ficar transbordante das maravilhas de Deus.
O seu coração, esperançado na prática alegre e possível do amor que lhe foi
anunciado, sente que toda a palavra na Escritura, antes de ser exigência, é
dom.
143. O desafio duma pregação
inculturada consiste em transmitir a síntese da mensagem evangélica, e não
ideias ou valores soltos. Onde está a tua síntese, ali está o teu coração. A
diferença entre fazer luz com sínteses e o fazê-lo com ideias soltas é a mesma
que há entre o ardor do coração e o tédio. O pregador tem a belíssima e difícil
missão de unir os corações que se amam: o do Senhor e os do seu povo. O diálogo
entre Deus e o seu povo reforça ainda mais a aliança entre ambos e estreita o
vínculo da caridade. Durante o tempo da homilia, os corações dos crentes fazem
silêncio e deixam-No falar a Ele. O Senhor e o seu povo falam-se de mil e uma
maneiras directamente, sem intermediários, mas, na homilia, querem que alguém
sirva de instrumento e exprima os sentimentos, de modo que, depois, cada um
possa escolher como continuar a sua conversa. A palavra é, essencialmente,
mediadora e necessita não só dos dois dialogantes mas também de um pregador que
a represente como tal, convencido de que «não nos pregamos a nós mesmos, mas a
Cristo Jesus, o Senhor, e nos consideramos vossos servos, por amor de Jesus» (2
Cor 4, 5).
144. Falar com o coração implica
mantê-lo não só ardente, mas também iluminado pela integridade da Revelação e
pelo caminho que essa Palavra percorreu no coração da Igreja e do nosso povo
fiel ao longo da sua história. A identidade cristã, que é aquele abraço
baptismal que o Pai nos deu em pequeninos, faz-nos anelar, como filhos pródigos
– e predilectos em Maria –, pelo outro abraço, o do Pai misericordioso que nos
espera na glória. Fazer com que o nosso povo se sinta, de certo modo, no meio
destes dois abraços é a tarefa difícil, mas bela, de quem prega o Evangelho.
3. A preparação da pregação
145. A preparação da pregação é
uma tarefa tão importante que convém dedicar-lhe um tempo longo de estudo,
oração, reflexão e criatividade pastoral. Com muita amizade, quero deter-me a
propor um itinerário de preparação da homilia. Trata-se de indicações que, para
alguns, poderão parecer óbvias, mas considero oportuno sugeri-las para recordar
a necessidade de dedicar um tempo privilegiado a este precioso ministério.
Alguns párocos sustentam frequentemente que isto não é possível por causa de
tantas incumbências que devem desempenhar; todavia atrevo-me a pedir que todas
as semanas se dedique a esta tarefa um tempo pessoal e comunitário
suficientemente longo, mesmo que se tenha de dar menos tempo a outras tarefas
também importantes. A confiança no Espírito Santo que actua na pregação não é
meramente passiva, mas activa e criativa. Implica oferecer-se como instrumento
(cf. Rm 12, 1), com todas as próprias capacidades, para que possam ser
utilizadas por Deus. Um pregador que não se prepara não é «espiritual»: é
desonesto e irresponsável quanto aos dons que recebeu.
O culto da verdade
146. O primeiro passo, depois de
invocar o Espírito Santo, é prestar toda a atenção ao texto bíblico, que deve
ser o fundamento da pregação. Quando alguém se detém procurando compreender
qual é a mensagem dum texto, exerce o «culto da verdade». É a humildade do
coração que reconhece que a Palavra sempre nos transcende, que somos, «não os
árbitros nem os proprietários, mas os depositários, os arautos e os
servidores». Esta atitude de humilde e deslumbrada veneração da Palavra
exprime-se detendo-se a estudá-la com o máximo cuidado e com um santo temor de
a manipular. Para se poder interpretar um texto bíblico, faz falta paciência,
pôr de parte toda a ansiedade e atribuir-lhe tempo, interesse e dedicação
gratuita. Há que pôr de lado qualquer preocupação que nos inquiete, para entrar
noutro âmbito de serena atenção. Não vale a pena dedicar-se a ler um texto
bíblico, se aquilo que se quer obter são resultados rápidos, fáceis ou
imediatos. Por isso, a preparação da pregação requer amor. Uma pessoa só dedica
um tempo gratuito e sem pressa às coisas ou às pessoas que ama; e aqui trata-se
de amar a Deus, que quis falar. A partir deste amor, uma pessoa pode deter-se
todo o tempo que for necessário, com a atitude dum discípulo: «Fala, Senhor; o
teu servo escuta» (1 Sam 3, 9).
147. Em primeiro lugar, convém
estarmos seguros de compreender adequadamente o significado das palavras que
lemos. Quero insistir em algo que parece evidente, mas que nem sempre é tido em
conta: o texto bíblico, que estudamos, tem dois ou três mil anos, a sua
linguagem é muito diferente da que usamos agora. Por mais que nos pareça termos
entendido as palavras, que estão traduzidas na nossa língua, isso não significa
que compreendemos correctamente tudo o que o escritor sagrado queria exprimir.
São conhecidos os vários recursos que proporciona a análise literária: prestar
atenção às palavras que se repetem ou evidenciam, reconhecer a estrutura e o
dinamismo próprio dum texto, considerar o lugar que ocupam os personagens, etc.
Mas o objectivo não é o de compreender todos os pequenos detalhes dum texto; o
mais importante é descobrir qual é a mensagem principal, a mensagem que confere
estrutura e unidade ao texto. Se o pregador não faz este esforço, é possível
que também a sua pregação não tenha unidade nem ordem; o seu discurso será
apenas uma súmula de várias ideias desarticuladas que não conseguirão mobilizar
os outros. A mensagem central é aquela que o autor quis primariamente
transmitir, o que implica identificar não só uma ideia mas também o efeito que
esse autor quis produzir. Se um texto foi escrito para consolar, não deveria
ser utilizado para corrigir erros; se foi escrito para exortar, não deveria ser
utilizado para instruir; se foi escrito para ensinar algo sobre Deus, não
deveria ser utilizado para explicar várias opiniões teológicas; se foi escrito
para levar ao louvor ou ao serviço missionário, não o utilizemos para informar
sobre as últimas notícias.
148. É verdade que, para se
entender adequadamente o sentido da mensagem central dum texto, é preciso
colocá-lo em ligação com o ensinamento da Bíblia inteira, transmitida pela
Igreja. Este é um princípio importante da interpretação bíblica, que tem em
conta que o Espírito Santo não inspirou só uma parte, mas a Bíblia inteira, e
que, nalgumas questões, o povo cresceu na sua compreensão da vontade de Deus a
partir da experiência vivida. Assim se evitam interpretações equivocadas ou
parciais, que contradizem outros ensinamentos da mesma Escritura. Mas isto não
significa enfraquecer a acentuação própria e específica do texto que se deve
pregar. Um dos defeitos duma pregação enfadonha e ineficaz é precisamente não
poder transmitir a força própria do texto que foi proclamado.
A personalização da Palavra
149. O pregador «deve ser o
primeiro a desenvolver uma grande familiaridade pessoal com a Palavra de Deus:
não lhe basta conhecer o aspecto linguístico ou exegético, sem dúvida
necessário; precisa de se abeirar da Palavra com o coração dócil e orante, a
fim de que ela penetre a fundo nos seus pensamentos e sentimentos e gere nele
uma nova mentalidade». Faz-nos bem renovar, cada dia, cada domingo, o nosso
ardor na preparação da homilia, e verificar se, em nós mesmos, cresce o amor
pela Palavra que pregamos. É bom não esquecer que, «particularmente, a maior ou
menor santidade do ministro influi sobre o anúncio da Palavra». Como diz São
Paulo, «falamos, não para agradar aos homens, mas a Deus que põe à prova os
nossos corações» (1 Ts 2, 4). Se está vivo este desejo de, primeiro, ouvirmos
nós a Palavra que temos de pregar, esta transmitir-se-á duma maneira ou doutra
ao povo fiel de Deus: «A boca fala da abundância do coração» (Mt 12, 34). As
leituras do domingo ressoarão com todo o seu esplendor no coração do povo, se
primeiro ressoarem assim no coração do Pastor.
150. Jesus irritava-Se com
pretensiosos mestres, muito exigentes com os outros, que ensinavam a Palavra de
Deus mas não se deixavam iluminar por ela: «Atam fardos pesados e insuportáveis
e colocam-nos aos ombros dos outros, mas eles não põem nem um dedo para os
deslocar» (Mt 23, 4). E o Apóstolo São Tiago exortava: «Meus irmãos, não haja
muitos entre vós que pretendam ser mestres, sabendo que nós teremos um
julgamento mais severo» (3, 1). Quem quiser pregar, deve primeiro estar
disposto a deixar-se tocar pela Palavra e fazê-la carne na sua vida concreta.
Assim, a pregação consistirá na actividade tão intensa e fecunda que é
«comunicar aos outros o que foi contemplado». Por tudo isto, antes de preparar
concretamente o que vai dizer na pregação, o pregador tem que aceitar ser primeiro
trespassado por essa Palavra que há-de trespassar os outros, porque é uma
Palavra viva e eficaz, que, como uma espada, «penetra até à divisão da alma e
do corpo, das articulações e das medulas, e discerne os sentimentos e intenções
do coração» (Heb 4, 12). Isto tem um valor pastoral. Mesmo nesta época, a gente
prefere escutar as testemunhas: «Tem sede de autenticidade (...), reclama
evangelizadores que lhe falem de um Deus que eles conheçam e lhes seja familiar
como se eles vissem o invisível».
151. Não nos é pedido que sejamos
imaculados, mas que não cessamos de melhorar, vivamos o desejo profundo de
progredir no caminho do Evangelho, e não deixemos cair os braços. Indispensável
é que o pregador esteja seguro de que Deus o ama, de que Jesus Cristo o salvou,
de que o seu amor tem sempre a última palavra. À vista de tanta beleza, sentirá
muitas vezes que a sua vida não lhe dá plenamente glória e desejará
sinceramente corresponder melhor a um amor tão grande. Todavia, se não se detém
com sincera abertura a escutar esta Palavra, se não deixa que a mesma toque a
sua vida, que o interpele, exorte, mobilize, se não dedica tempo para rezar com
esta Palavra, então na realidade será um falso profeta, um embusteiro ou um
charlatão vazio. Em todo o caso, desde que reconheça a sua pobreza e deseje
comprometer-se mais, sempre poderá dar Jesus Cristo, dizendo como Pedro: «Não
tenho ouro nem prata, mas o que tenho, isto te dou» (Act 3, 6). O Senhor quer
servir-Se de nós como seres vivos, livres e criativos, que se deixam penetrar
pela sua Palavra antes de a transmitir; a sua mensagem deve passar realmente
através do pregador, e não só pela sua razão, mas tomando posse de todo o seu
ser. O Espírito Santo, que inspirou a Palavra, é quem «hoje ainda, como nos
inícios da Igreja, age em cada um dos evangelizadores que se deixa possuir e
conduzir por Ele, e põe na sua boca as palavras que ele sozinho não poderia
encontrar».
A leitura espiritual
152. Há uma modalidade concreta
para escutarmos aquilo que o Senhor nos quer dizer na sua Palavra e nos
deixarmos transformar pelo Espírito: designamo-la por «lectio divina». Consiste
na leitura da Palavra de Deus num tempo de oração, para lhe permitir que nos
ilumine e renove. Esta leitura orante da Bíblia não está separada do estudo que
o pregador realiza para individuar a mensagem central do texto; antes pelo
contrário, é dela que deve partir para procurar descobrir aquilo que essa mesma
mensagem tem a dizer à sua própria vida. A leitura espiritual dum texto deve
partir do seu sentido literal. Caso contrário, uma pessoa facilmente fará o
texto dizer o que lhe convém, o que serve para confirmar as suas próprias
decisões, o que se adapta aos seus próprios esquemas mentais. E isto seria, em
última análise, usar o sagrado para proveito próprio e passar esta confusão
para o povo de Deus. Nunca devemos esquecer-nos de que, por vezes, «também
Satanás se disfarça em anjo de luz» (2 Cor 11, 14).
153. Na presença de Deus, numa
leitura tranquila do texto, é bom perguntar-se, por exemplo: «Senhor, a mim que
me diz este texto? Com esta mensagem, que quereis mudar na minha vida? Que é
que me dá fastídio neste texto? Porque é que isto não me interessa?»; ou então:
«De que gosto? Em que me estimula esta Palavra? Que me atrai? E porque me
atrai?». Quando se procura ouvir o Senhor, é normal ter tentações. Uma delas é
simplesmente sentir-se chateado e acabrunhado e dar tudo por encerrado; outra
tentação muito comum é começar a pensar naquilo que o texto diz aos outros,
para evitar de o aplicar à própria vida. Acontece também começar a procurar
desculpas, que nos permitam diluir a mensagem específica do texto. Outras vezes
pensamos que Deus nos exige uma decisão demasiado grande, que ainda não estamos
em condições de tomar. Isto leva muitas pessoas a perderem a alegria do
encontro com a Palavra, mas isso significaria esquecer que ninguém é mais
paciente do que Deus Pai, ninguém compreende e sabe esperar como Ele. Deus
convida sempre a dar um passo mais, mas não exige uma resposta completa, se
ainda não percorremos o caminho que a torna possível. Apenas quer que olhemos
com sinceridade a nossa vida e a apresentemos sem fingimento diante dos seus
olhos, que estejamos dispostos a continuar a crescer, e peçamos a Ele o que
ainda não podemos conseguir.
À escuta do povo
154. O pregador deve também
pôr-se à escuta do povo, para descobrir aquilo que os fiéis precisam de ouvir.
Um pregador é um contemplativo da Palavra e também um contemplativo do povo.
Desta forma, descobre «as aspirações, as riquezas e as limitações, as maneiras
de orar, de amar, de encarar a vida e o mundo, que caracterizam este ou aquele
aglomerado humano», prestando atenção «ao povo concreto com os seus sinais e
símbolos e respondendo aos problemas que apresenta». Trata-se de relacionar a
mensagem do texto bíblico com uma situação humana, com algo que as pessoas
vivem, com uma experiência que precisa da luz da Palavra. Esta preocupação não
é ditada por uma atitude oportunista ou diplomática, mas é profundamente
religiosa e pastoral. No fundo, é uma «sensibilidade espiritual para saber ler
nos acontecimentos a mensagem de Deus», e isto é muito mais do que encontrar
algo interessante para dizer. Procura-se descobrir «o que o Senhor tem a dizer
nessas circunstâncias». Então a preparação da pregação transforma-se num
exercício de discernimento evangélico, no qual se procura reconhecer – à luz do
Espírito – «um “apelo” que Deus faz ressoar na própria situação histórica:
também nele e através dele, Deus chama o crente».
155. Nesta busca, é possível
recorrer apenas a alguma experiência humana frequente, como, por exemplo, a
alegria dum reencontro, as desilusões, o medo da solidão, a compaixão pela dor
alheia, a incerteza perante o futuro, a preocupação com um ser querido, etc.;
mas faz falta intensificar a sensibilidade para se reconhecer o que isso
realmente tem a ver com a vida das pessoas. Recordemos que nunca se deve
responder a perguntas que ninguém se põe, nem convém fazer a crónica da
actualidade para despertar interesse; para isso, já existem os programas
televisivos. Em todo o caso, é possível partir de algum facto para que a
Palavra possa repercutir fortemente no seu apelo à conversão, à adoração, a
atitudes concretas de fraternidade e serviço, etc., porque acontece, às vezes,
que algumas pessoas gostam de ouvir comentários sobre a realidade na pregação,
mas nem por isso se deixam interpelar pessoalmente.
Recursos pedagógicos
156. Alguns acreditam que podem
ser bons pregadores por saber o que devem dizer, mas descuidam o como, a forma
concreta de desenvolver uma pregação. Zangam-se quando os outros não os ouvem
ou não os apreciam, mas talvez não se tenham empenhado por encontrar a forma
adequada de apresentar a mensagem. Lembremo-nos de que «a evidente importância
do conteúdo da evangelização não deve esconder a importância dos métodos e dos
meios da mesma evangelização». A preocupação com a forma de pregar também é uma
atitude profundamente espiritual. É responder ao amor de Deus, entregando-nos
com todas as nossas capacidades e criatividade à missão que Ele nos confia; mas
também é um exímio exercício de amor ao próximo, porque não queremos oferecer
aos outros algo de má qualidade. Na Bíblia, por exemplo, aparece a recomendação
para se preparar a pregação de modo a garantir uma apropriada extensão: «Sê conciso
no teu falar: muitas coisas em poucas palavras» (Sir 32, 8).
157. Apenas, para exemplificar,
recordemos alguns recursos práticos que podem enriquecer uma pregação e
torná-la mais atraente. Um dos esforços mais necessários é aprender a usar
imagens na pregação, isto é, a falar por imagens. Às vezes usam-se exemplos
para tornar mais compreensível algo que se quer explicar, mas estes exemplos
frequentemente dirigem-se apenas ao entendimento, enquanto as imagens ajudam a
apreciar e acolher a mensagem que se quer transmitir. Uma imagem fascinante faz
com que se sinta a mensagem como algo familiar, próximo, possível, relacionado
com a própria vida. Uma imagem apropriada pode levar a saborear a mensagem que
se quer transmitir, desperta um desejo e motiva a vontade na direcção do
Evangelho. Uma boa homilia, como me dizia um antigo professor, deve conter «uma
ideia, um sentimento, uma imagem».
158. Já dizia Paulo VI que os
fiéis «esperam muito desta pregação e dela poderão tirar fruto, contanto que
ela seja simples, clara, directa, adaptada». A simplicidade tem a ver com a
linguagem utilizada. Deve ser linguagem que os destinatários compreendam, para
não correr o risco de falar ao vento. Acontece frequentemente que os pregadores
usam palavras que aprenderam nos seus estudos e em certos ambientes, mas que
não fazem parte da linguagem comum das pessoas que os ouvem. Há palavras
próprias da teologia ou da catequese, cujo significado não é compreensível para
a maioria dos cristãos. O maior risco dum pregador é habituar-se à sua própria
linguagem e pensar que todos os outros a usam e compreendem espontaneamente. Se
se quer adaptar à linguagem dos outros, para poder chegar até eles com a
Palavra, deve-se escutar muito, é preciso partilhar a vida das pessoas e
prestar-lhes benévola atenção. A simplicidade e a clareza são duas coisas
diferentes. A linguagem pode ser muito simples, mas pouco clara a pregação.
Pode-se tornar incompreensível pela desordem, pela sua falta de lógica, ou
porque trata vários temas ao mesmo tempo. Por isso, outro cuidado necessário é
procurar que a pregação tenha unidade temática, uma ordem clara e ligação entre
as frases, de modo que as pessoas possam facilmente seguir o pregador e captar
a lógica do que lhes diz.
159. Outra característica é a linguagem
positiva. Não diz tanto o que não se deve fazer, como sobretudo propõe o que
podemos fazer melhor. E, se aponta algo negativo, sempre procura mostrar também
um valor positivo que atraia, para não se ficar pela queixa, o lamento, a
crítica ou o remorso. Além disso, uma pregação positiva oferece sempre
esperança, orienta para o futuro, não nos deixa prisioneiros da negatividade.
Como é bom que sacerdotes, diáconos e leigos se reúnam periodicamente para
encontrarem, juntos, os recursos que tornem mais atraente a pregação!
4. Uma evangelização para o
aprofundamento do querigma
160. O mandato missionário do
Senhor inclui o apelo ao crescimento da fé, quando diz: «ensinando-os a cumprir
tudo quanto vos tenho mandado» (Mt 28, 20). Daqui se vê claramente que o
primeiro anúncio deve desencadear também um caminho de formação e de
amadurecimento. A evangelização procura também o crescimento, o que implica
tomar muito a sério em cada pessoa o projecto que Deus tem para ela. Cada ser
humano precisa sempre mais de Cristo, e a evangelização não deveria deixar que
alguém se contente com pouco, mas possa dizer com plena verdade: «Já não sou eu
que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gal 2, 20).
161. Não seria correcto que este
apelo ao crescimento fosse interpretado, exclusiva ou prioritariamente, como
formação doutrinal. Trata-se de «cumprir» aquilo que o Senhor nos indicou como
resposta ao seu amor, sobressaindo, junto com todas as virtudes, aquele
mandamento novo que é o primeiro, o maior, o que melhor nos identifica como
discípulos: «É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como Eu vos
amei» (Jo 15, 12). É evidente que, quando os autores do Novo Testamento querem
reduzir a mensagem moral cristã a uma última síntese, ao mais essencial,
apresentam-nos a exigência irrenunciável do amor ao próximo: «Quem ama o
próximo cumpre plenamente a lei. (…) É no amor que está o pleno cumprimento da
lei» (Rm 13, 8.10). De igual modo, São Paulo, para quem o mandamento do amor
não só resume a lei mas constitui o centro e a razão de ser da mesma: «Toda a
lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como a ti
mesmo» (Gal 5, 14). E, às suas comunidades, apresenta a vida cristã como um
caminho de crescimento no amor: «O Senhor vos faça crescer e superabundar de
caridade uns para com os outros e para com todos» (1 Ts 3, 12). Também São
Tiago exorta os cristãos a cumprir «a lei do Reino, de acordo com a Escritura:
Amarás o teu próximo como a ti mesmo» (2, 8), acabando por não citar nenhum
preceito.
162. Entretanto, este caminho de
resposta e crescimento aparece sempre precedido pelo dom, porque o antecede
aquele outro pedido do Senhor: «baptizando-os em nome...» (Mt 28, 19). A
adopção como filhos que o Pai oferece gratuitamente e a iniciativa do dom da
sua graça (cf. Ef 2, 8-9; 1 Cor 4, 7) são a condição que torna possível esta
santificação constante, que agrada a Deus e Lhe dá glória. É deixar-se
transformar em Cristo, vivendo progressivamente «de acordo com o Espírito» (Rm
8, 5).
Uma catequese querigmática e mistagógica
163. A educação e a catequese
estão ao serviço deste crescimento. Já temos à disposição vários textos do
Magistério e subsídios sobre a catequese, preparados pela Santa Sé e por
diversos episcopados. Lembro a Exortação Apostólica Catechesi tradendae (1979),
o Directório Geral para a Catequese (1997) e outros documentos cujo conteúdo,
sempre actual, não é necessário repetir aqui. Queria deter-me apenas nalgumas
considerações que me parece oportuno evidenciar.
164. Voltámos a descobrir que
também na catequese tem um papel fundamental o primeiro anúncio ou querigma,
que deve ocupar o centro da actividade evangelizadora e de toda a tentativa de
renovação eclesial. O querigma é trinitário. É o fogo do Espírito que se dá sob
a forma de línguas e nos faz crer em Jesus Cristo, que, com a sua morte e
ressurreição, nos revela e comunica a misericórdia infinita do Pai. Na boca do
catequista, volta a ressoar sempre o primeiro anúncio: «Jesus Cristo ama-te,
deu a sua vida para te salvar, e agora vive contigo todos os dias para te
iluminar, fortalecer, libertar». Ao designar-se como «primeiro» este anúncio,
não significa que o mesmo se situa no início e que, em seguida, se esquece ou
substitui por outros conteúdos que o superam; é o primeiro em sentido qualitativo,
porque é o anúncio principal, aquele que sempre se tem de voltar a ouvir de
diferentes maneiras e aquele que sempre se tem de voltar a anunciar, duma forma
ou doutra, durante a catequese, em todas as suas etapas e momentos. Por isso,
também «o sacerdote, como a Igreja, deve crescer na consciência da sua
permanente necessidade de ser evangelizado».
165. Não se deve pensar que, na
catequese, o querigma é deixado de lado em favor duma formação supostamente
mais «sólida». Nada há de mais sólido, mais profundo, mais seguro, mais
consistente e mais sábio que esse anúncio. Toda a formação cristã é,
primariamente, o aprofundamento do querigma que se vai, cada vez mais e melhor,
fazendo carne, que nunca deixa de iluminar a tarefa catequética, e permite
compreender adequadamente o sentido de qualquer tema que se desenvolve na
catequese. É o anúncio que dá resposta ao anseio de infinito que existe em todo
o coração humano. A centralidade do querigma requer certas características do
anúncio que hoje são necessárias em toda a parte: que exprima o amor salvífico
de Deus como prévio à obrigação moral e religiosa, que não imponha a verdade
mas faça apelo à liberdade, que seja pautado pela alegria, o estímulo, a
vitalidade e uma integralidade harmoniosa que não reduza a pregação a poucas
doutrinas, por vezes mais filosóficas que evangélicas. Isto exige do
evangelizador certas atitudes que ajudam a acolher melhor o anúncio:
proximidade, abertura ao diálogo, paciência, acolhimento cordial que não
condena.
166. Outra característica da
catequese, que se desenvolveu nas últimas décadas, é a iniciação mistagógica,
que significa essencialmente duas coisas: a necessária progressividade da
experiência formativa na qual intervém toda a comunidade e uma renovada
valorização dos sinais litúrgicos da iniciação cristã. Muitos manuais e
planificações ainda não se deixaram interpelar pela necessidade duma renovação
mistagógica, que poderia assumir formas muito diferentes de acordo com o
discernimento de cada comunidade educativa. O encontro catequético é um anúncio
da Palavra e está centrado nela, mas precisa sempre duma ambientação adequada e
duma motivação atraente, do uso de símbolos eloquentes, da sua inserção num
amplo processo de crescimento e da integração de todas as dimensões da pessoa
num caminho comunitário de escuta e resposta.
167. É bom que toda a catequese
preste uma especial atenção à «via da beleza (via pulchritudinis)». Anunciar
Cristo significa mostrar que crer n’Ele e segui-Lo não é algo apenas verdadeiro
e justo, mas também belo, capaz de cumular a vida dum novo esplendor e duma
alegria profunda, mesmo no meio das provações. Nesta perspectiva, todas as
expressões de verdadeira beleza podem ser reconhecidas como uma senda que ajuda
a encontrar-se com o Senhor Jesus. Não se trata de fomentar um relativismo
estético, que pode obscurecer o vínculo indivisível entre verdade, bondade e
beleza, mas de recuperar a estima da beleza para poder chegar ao coração do
homem e fazer resplandecer nele a verdade e a bondade do Ressuscitado. Se nós,
como diz Santo Agostinho, não amamos senão o que é belo, o Filho feito homem,
revelação da beleza infinita, é sumamente amável e atrai-nos para Si com laços
de amor. Por isso, torna-se necessário que a formação na via pulchritudinis
esteja inserida na transmissão da fé. É desejável que cada Igreja particular
incentive o uso das artes na sua obra evangelizadora, em continuidade com a
riqueza do passado, mas também na vastidão das suas múltiplas expressões
actuais, a fim de transmitir a fé numa nova «linguagem parabólica». É preciso
ter a coragem de encontrar os novos sinais, os novos símbolos, uma nova carne
para a transmissão da Palavra, as diversas formas de beleza que se manifestam
em diferentes âmbitos culturais, incluindo aquelas modalidades não convencionais
de beleza que podem ser pouco significativas para os evangelizadores, mas
tornaram-se particularmente atraentes para os outros.
168. Relativamente à proposta
moral da catequese, que convida a crescer na fidelidade ao estilo de vida do
Evangelho, é oportuno indicar sempre o bem desejável, a proposta de vida, de
maturidade, de realização, de fecundidade, sob cuja luz se pode entender a
nossa denúncia dos males que a podem obscurecer. Mais do que como peritos em
diagnósticos apocalípticos ou juízes sombrios que se comprazem em detectar
qualquer perigo ou desvio, é bom que nos possam ver como mensageiros alegres de
propostas altas, guardiões do bem e da beleza que resplandecem numa vida fiel
ao Evangelho.
O acompanhamento pessoal dos
processos de crescimento
169. Numa civilização
paradoxalmente ferida pelo anonimato e, simultaneamente, obcecada com os
detalhes da vida alheia, descaradamente doente de morbosa curiosidade, a Igreja
tem necessidade de um olhar solidário para contemplar, comover-se e parar
diante do outro, tantas vezes quantas forem necessárias. Neste mundo, os
ministros ordenados e os outros agentes de pastoral podem tornar presente a
fragrância da presença solidária de Jesus e o seu olhar pessoal. A Igreja
deverá iniciar os seus membros – sacerdotes, religiosos e leigos – nesta «arte
do acompanhamento», para que todos aprendam a descalçar sempre as sandálias
diante da terra sagrada do outro (cf. Ex 3, 5). Devemos dar ao nosso caminhar o
ritmo salutar da proximidade, com um olhar respeitoso e cheio de compaixão, mas
que ao mesmo tempo cure, liberte e anime a amadurecer na vida cristã.
170. Embora possa soar óbvio, o
acompanhamento espiritual deve conduzir cada vez mais para Deus, em quem
podemos alcançar a verdadeira liberdade. Alguns crêem-se livres quando caminham
à margem de Deus, sem se dar conta que ficam existencialmente órfãos,
desamparados, sem um lar para onde sempre possam voltar. Deixam de ser
peregrinos para se transformarem em errantes, que giram indefinidamente ao
redor de si mesmos, sem chegar a lado nenhum. O acompanhamento seria
contraproducente, caso se tornasse uma espécie de terapia que incentive esta
reclusão das pessoas na sua imanência e deixe de ser uma peregrinação com
Cristo para o Pai.
171. Hoje mais do que nunca
precisamos de homens e mulheres que conheçam, a partir da sua experiência de
acompanhamento, o modo de proceder onde reine a prudência, a capacidade de
compreensão, a arte de esperar, a docilidade ao Espírito, para no meio de todos
defender as ovelhas a nós confiadas dos lobos que tentam desgarrar o rebanho.
Precisamos de nos exercitar na arte de escutar, que é mais do que ouvir.
Escutar, na comunicação com o outro, é a capacidade do coração que torna
possível a proximidade, sem a qual não existe um verdadeiro encontro
espiritual. Escutar ajuda-nos a individuar o gesto e a palavra oportunos que
nos desinstalam da cómoda condição de espectadores. Só a partir desta escuta
respeitosa e compassiva é que se pode encontrar os caminhos para um crescimento
genuíno, despertar o desejo do ideal cristão, o anseio de corresponder
plenamente ao amor de Deus e o anelo de desenvolver o melhor de quanto Deus
semeou na nossa própria vida. Mas sempre com a paciência de quem está ciente
daquilo que ensinava São Tomás de Aquino: alguém pode ter a graça e a caridade,
mas não praticar bem nenhuma das virtudes «por causa de algumas inclinações
contrárias» que persistem. Por outras palavras, as virtudes organizam-se sempre
e necessariamente «in habitu», embora os condicionamentos possam dificultar as
operações desses hábitos virtuosos. Por isso, faz falta «uma pedagogia que
introduza a pessoa passo a passo até chegar à plena apropriação do mistério».
Para se chegar a um estado de maturidade, isto é, para que as pessoas sejam
capazes de decisões verdadeiramente livres e responsáveis, é preciso dar tempo
ao tempo, com uma paciência imensa. Como dizia o Beato Pedro Fabro: «O tempo é
o mensageiro de Deus».
172. Quem acompanha sabe
reconhecer que a situação de cada pessoa diante de Deus e a sua vida em graça é
um mistério que ninguém pode conhecer plenamente a partir do exterior. O
Evangelho propõe-nos que se corrija e ajude a crescer uma pessoa a partir do
reconhecimento da maldade objectiva das suas acções (cf. Mt 18, 15), mas sem
proferir juízos sobre a sua responsabilidade e culpabilidade (cf. Mt 7, 1; Lc
6, 37). Seja como for, um válido acompanhante não transige com os fatalismos
nem com a pusilanimidade. Sempre convida a querer curar-se, a pegar no catre
(cf. Mt 9, 6), a abraçar a cruz, a deixar tudo e partir sem cessar para
anunciar o Evangelho. A experiência pessoal de nos deixarmos acompanhar e
curar, conseguindo exprimir com plena sinceridade a nossa vida a quem nos
acompanha, ensina-nos a ser pacientes e compreensivos com os outros e
habilita-nos a encontrar as formas para despertar neles a confiança, a abertura
e a vontade de crescer.
173. O acompanhamento espiritual
autêntico começa sempre e prossegue no âmbito do serviço à missão
evangelizadora. A relação de Paulo com Timóteo e Tito é exemplo deste
acompanhamento e desta formação durante a acção apostólica. Ao mesmo tempo que
lhes confia a missão de permanecer numa cidade concreta para «acabar de
organizar o que ainda falta» (Tt 1, 5; cf. 1 Tm 1, 3-5), dá-lhes os critérios
para a vida pessoal e a actividade pastoral. Isto é claramente distinto de todo
o tipo de acompanhamento intimista, de auto-realização isolada. Os discípulos
missionários acompanham discípulos missionários.
Ao redor da Palavra de Deus
174. Não é só a homilia que se
deve alimentar da Palavra de Deus. Toda a evangelização está fundada sobre esta
Palavra escutada, meditada, vivida, celebrada e testemunhada. A Sagrada
Escritura é fonte da evangelização. Por isso, é preciso formar-se continuamente
na escuta da Palavra. A Igreja não evangeliza, se não se deixa continuamente
evangelizar. É indispensável que a Palavra de Deus «se torne cada vez mais o
coração de toda a actividade eclesial». A Palavra de Deus ouvida e celebrada,
sobretudo na Eucaristia, alimenta e reforça interiormente os cristãos e
torna-os capazes de um autêntico testemunho evangélico na vida diária.
Superámos já a velha contraposição entre Palavra e Sacramento: a Palavra
proclamada, viva e eficaz, prepara a recepção do Sacramento e, no Sacramento,
essa Palavra alcança a sua máxima eficácia.
175. O estudo da Sagrada
Escritura deve ser uma porta aberta para todos os crentes. É fundamental que a
Palavra revelada fecunde radicalmente a catequese e todos os esforços para
transmitir a fé. A evangelização requer a familiaridade com a Palavra de Deus,
e isto exige que as dioceses, paróquias e todos os grupos católicos proponham
um estudo sério e perseverante da Bíblia e promovam igualmente a sua leitura
orante pessoal e comunitária. Nós não procuramos Deus tacteando, nem precisamos
de esperar que Ele nos dirija a palavra, porque realmente «Deus falou, já não é
o grande desconhecido, mas mostrou-Se a Si mesmo». Acolhamos o tesouro sublime
da Palavra revelada!
Capítulo IVA DIMENSÃO SOCIAL DA
EVANGELIZAÇÃO
176. Evangelizar é tornar o Reino
de Deus presente no mundo. «Nenhuma definição parcial e fragmentada, porém,
chegará a dar razão da realidade rica, complexa e dinâmica que é a
evangelização, a não ser com o risco de a empobrecer e até mesmo de a mutilar».
Desejo agora partilhar as minhas preocupações relacionadas com a dimensão
social da evangelização, precisamente porque, se esta dimensão não for
devidamente explicitada, corre-se sempre o risco de desfigurar o sentido
autêntico e integral da missão evangelizadora.
1. As repercussões comunitárias e
sociais do querigma
177. O querigma possui um
conteúdo inevitavelmente social: no próprio coração do Evangelho, aparece a
vida comunitária e o compromisso com os outros. O conteúdo do primeiro anúncio
tem uma repercussão moral imediata, cujo centro é a caridade.
Confissão da fé e compromisso
social
178. Confessar um Pai que ama
infinitamente cada ser humano implica descobrir que «assim lhe confere uma
dignidade infinita». Confessar que o Filho de Deus assumiu a nossa carne humana
significa que cada pessoa humana foi elevada até ao próprio coração de Deus.
Confessar que Jesus deu o seu sangue por nós impede-nos de ter qualquer dúvida
acerca do amor sem limites que enobrece todo o ser humano. A sua redenção tem
um sentido social, porque «Deus, em Cristo, não redime somente a pessoa
individual, mas também as relações sociais entre os homens». Confessar que o
Espírito Santo actua em todos implica reconhecer que Ele procura permear toda a
situação humana e todos os vínculos sociais: «O Espírito Santo possui uma
inventiva infinita, própria da mente divina, que sabe prover a desfazer os nós
das vicissitudes humanas mais complexas e impenetráveis». A evangelização
procura colaborar também com esta acção libertadora do Espírito. O próprio
mistério da Trindade nos recorda que somos criados à imagem desta comunhão
divina, pelo que não podemos realizar-nos nem salvar-nos sozinhos. A partir do
coração do Evangelho, reconhecemos a conexão íntima que existe entre
evangelização e promoção humana, que se deve necessariamente exprimir e
desenvolver em toda a acção evangelizadora. A aceitação do primeiro anúncio,
que convida a deixar-se amar por Deus e a amá-Lo com o amor que Ele mesmo nos
comunica, provoca na vida da pessoa e nas suas acções uma primeira e
fundamental reacção: desejar, procurar e ter a peito o bem dos outros.
179. Este laço indissolúvel entre
a recepção do anúncio salvífico e um efectivo amor fraterno exprime-se nalguns
textos da Escritura, que convém considerar e meditar atentamente para tirar
deles todas as consequências. É uma mensagem a que frequentemente nos
habituamos e repetimos quase mecanicamente, mas sem nos assegurarmos de que
tenha real incidência na nossa vida e nas nossas comunidades. Como é perigoso e
prejudicial este habituar-se que nos leva a perder a maravilha, a fascinação, o
entusiasmo de viver o Evangelho da fraternidade e da justiça! A Palavra de Deus
ensina que, no irmão, está o prolongamento permanente da Encarnação para cada
um de nós: «Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a
Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40). O que fizermos aos outros, tem uma dimensão
transcendente: «Com a medida com que medirdes, assim sereis medidos» (Mt 7, 2);
e corresponde à misericórdia divina para connosco: «Sede misericordiosos como o
vosso Pai é misericordioso. Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis,
e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado
(...). A medida que usardes com os outros será usada convosco» (Lc 6, 36-38).
Nestes textos, exprime-se a absoluta prioridade da «saída de si próprio para o
irmão», como um dos dois mandamentos principais que fundamentam toda a norma
moral e como o sinal mais claro para discernir sobre o caminho de crescimento
espiritual em resposta à doação absolutamente gratuita de Deus. Por isso mesmo,
«também o serviço da caridade é uma dimensão constitutiva da missão da Igreja e
expressão irrenunciável da sua própria essência». Assim como a Igreja é
missionária por natureza, também brota inevitavelmente dessa natureza a
caridade efectiva para com o próximo, a compaixão que compreende, assiste e
promove.
O Reino que nos chama
180. Ao lermos as Escrituras,
fica bem claro que a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal
com Deus. E a nossa resposta de amor também não deveria ser entendida como uma
mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos
necessitados, o que poderia constituir uma «caridade por receita», uma série de
acções destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o
Reino de Deus (cf. Lc 4, 43); trata-se de amar a Deus, que reina no mundo. Na
medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de
fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos. Por isso, tanto o
anúncio como a experiência cristã tendem a provocar consequências sociais.
Procuremos o seu Reino: «Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e
tudo o mais se vos dará por acréscimo» (Mt 6, 33). O projecto de Jesus é
instaurar o Reino de seu Pai; por isso, pede aos seus discípulos: «Proclamai
que o Reino do Céu está perto» (Mt 10, 7).
181. O Reino, que se antecipa e
cresce entre nós, abrange tudo, como nos recorda aquele princípio de
discernimento que Paulo VI propunha a propósito do verdadeiro desenvolvimento:
«Todos os homens e o homem todo». Sabemos que «a evangelização não seria
completa, se ela não tomasse em consideração a interpelação recíproca que se
fazem constantemente o Evangelho e a vida concreta, pessoal e social, dos
homens». É o critério da universalidade, próprio da dinâmica do Evangelho, dado
que o Pai quer que todos os homens se salvem; e o seu plano de salvação
consiste em «submeter tudo a Cristo, reunindo n’Ele o que há no céu e na terra»
(Ef 1, 10). O mandato é: «Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda
criatura» (Mc 16, 15), porque toda «a criação se encontra em expectativa
ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Rm 8, 19). Toda a criação
significa também todos os aspectos da vida humana, de tal modo que «a missão do
anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo tem destinação universal. Seu mandato de
caridade alcança todas as dimensões da existência, todas as pessoas, todos os
ambientes da convivência e todos os povos. Nada do humano pode lhe parecer
estranho». A verdadeira esperança cristã, que procura o Reino escatológico,
gera sempre história.
A doutrina da Igreja sobre as
questões sociais
182. Os ensinamentos da Igreja
acerca de situações contingentes estão sujeitos a maiores ou novos desenvolvimentos
e podem ser objecto de discussão, mas não podemos evitar de ser concretos – sem
pretender entrar em detalhes – para que os grandes princípios sociais não
fiquem meras generalidades que não interpelam ninguém. É preciso tirar as suas
consequências práticas, para que «possam incidir com eficácia também nas
complexas situações hodiernas». Os Pastores, acolhendo as contribuições das
diversas ciências, têm o direito de exprimir opiniões sobre tudo aquilo que diz
respeito à vida das pessoas, dado que a tarefa da evangelização implica e exige
uma promoção integral de cada ser humano. Já não se pode afirmar que a religião
deve limitar-se ao âmbito privado e serve apenas para preparar as almas para o
céu. Sabemos que Deus deseja a felicidade dos seus filhos também nesta terra,
embora estejam chamados à plenitude eterna, porque Ele criou todas as coisas
«para nosso usufruto» (1 Tm 6, 17), para que todos possam usufruir delas. Por
isso, a conversão cristã exige rever «especialmente tudo o que diz respeito à
ordem social e consecução do bem comum».
183. Por conseguinte, ninguém
pode exigir-nos que releguemos a religião para a intimidade secreta das
pessoas, sem qualquer influência na vida social e nacional, sem nos preocupar
com a saúde das instituições da sociedade civil, sem nos pronunciar sobre os
acontecimentos que interessam aos cidadãos. Quem ousaria encerrar num templo e
silenciar a mensagem de São Francisco de Assis e da Beata Teresa de Calcutá?
Eles não o poderiam aceitar. Uma fé autêntica – que nunca é cómoda nem
individualista – comporta sempre um profundo desejo de mudar o mundo,
transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa passagem por
ela. Amamos este magnífico planeta, onde Deus nos colocou, e amamos a
humanidade que o habita, com todos os seus dramas e cansaços, com os seus
anseios e esperanças, com os seus valores e fragilidades. A terra é a nossa
casa comum, e todos somos irmãos. Embora «a justa ordem da sociedade e do
Estado seja dever central da política», a Igreja «não pode nem deve ficar à
margem na luta pela justiça». Todos os cristãos, incluindo os Pastores, são
chamados a preocupar-se com a construção dum mundo melhor. É disto mesmo que se
trata, pois o pensamento social da Igreja é primariamente positivo e construtivo,
orienta uma acção transformadora e, neste sentido, não deixa de ser um sinal de
esperança que brota do coração amoroso de Jesus Cristo. Ao mesmo tempo, «une o
próprio empenho ao esforço em campo social das demais Igrejas e Comunidades
eclesiais, tanto na reflexão doutrinal como na prática».
184. Aqui não é o momento para
explanar todas as graves questões sociais que afectam o mundo actual, algumas
das quais já comentei no terceiro capítulo. Este não é um documento social e,
para nos ajudar a reflectir sobre estes vários temas, temos um instrumento
muito apropriado no Compêndio da Doutrina Social da Igreja, cujo uso e estudo
vivamente recomendo. Além disso, nem o Papa nem a Igreja possui o monopólio da
interpretação da realidade social ou da apresentação de soluções para os
problemas contemporâneos. Posso repetir aqui o que indicava, com grande
lucidez, Paulo VI: «Perante situações, assim tão diversificadas, torna-se-nos
difícil tanto o pronunciar uma palavra única, como o propor uma solução que
tenha um valor universal. Mas, isso não é ambição nossa, nem mesmo a nossa
missão. É às comunidades cristãs que cabe analisarem, com objectividade, a
situação própria do seu país».
185. Em seguida, procurarei
concentrar-me sobre duas grandes questões que me parecem fundamentais neste
momento da história. Desenvolvê-las-ei com uma certa amplitude, porque
considero que irão determinar o futuro da humanidade. A primeira é a inclusão
social dos pobres; e a segunda, a questão da paz e do diálogo social.
2. A inclusão social dos pobres
186. Deriva da nossa fé em
Cristo, que Se fez pobre e sempre Se aproximou dos pobres e marginalizados, a
preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais abandonados da sociedade.
Unidos a Deus, ouvimos um clamor
187. Cada cristão e cada comunidade
são chamados a ser instrumentos de Deus ao serviço da libertação e promoção dos
pobres, para que possam integrar-se plenamente na sociedade; isto supõe estar
docilmente atentos, para ouvir o clamor do pobre e socorrê-lo. Basta percorrer
as Escrituras, para descobrir como o Pai bom quer ouvir o clamor dos pobres:
«Eu bem vi a opressão do meu povo que está no Egipto, e ouvi o seu clamor
diante dos seus inspectores; conheço, na verdade, os seus sofrimentos. Desci a
fim de os libertar (...). E agora, vai; Eu te envio...» (Ex 3, 7-8.10). E Ele
mostra-Se solícito com as suas necessidades: «Os filhos de Israel clamaram,
então, ao Senhor, e o Senhor enviou-lhes um salvador» (Jz 3, 15). Ficar surdo a
este clamor, quando somos os instrumentos de Deus para ouvir o pobre,
coloca-nos fora da vontade do Pai e do seu projecto, porque esse pobre
«clamaria ao Senhor contra ti, e aquilo tornar-se-ia para ti um pecado» (Dt 15,
9). E a falta de solidariedade, nas suas necessidades, influi directamente
sobre a nossa relação com Deus: «Se te amaldiçoa na amargura da sua alma,
Aquele que o criou ouvirá a sua oração» (Sir 4, 6). Sempre retorna a antiga
pergunta: «Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com
necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode
permanecer nele?» (1 Jo 3, 17). Lembremos também com quanta convicção o
Apóstolo São Tiago retomava a imagem do clamor dos oprimidos: «Olhai que o
salário que não pagastes, aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos, está
a clamar; e os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do
universo» (5, 4).
188. A Igreja reconheceu que a
exigência de ouvir este clamor deriva da própria obra libertadora da graça em
cada um de nós, pelo que não se trata de uma missão reservada apenas a alguns:
«A Igreja, guiada pelo Evangelho da Misericórdia e pelo amor ao homem, escuta o
clamor pela justiça e deseja responder com todas as suas forças». Nesta linha,
se pode entender o pedido de Jesus aos seus discípulos: «Dai-lhes vós mesmos de
comer» (Mc 6, 37), que envolve tanto a cooperação para resolver as causas
estruturais da pobreza e promover o desenvolvimento integral dos pobres, como
os gestos mais simples e diários de solidariedade para com as misérias muito
concretas que encontramos. Embora um pouco desgastada e, por vezes, até mal
interpretada, a palavra «solidariedade» significa muito mais do que alguns
actos esporádicos de generosidade; supõe a criação duma nova mentalidade que
pense em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a
apropriação dos bens por parte de alguns.
189. A solidariedade é uma
reacção espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e o destino
universal dos bens como realidades anteriores à propriedade privada. A posse
privada dos bens justifica-se para cuidar deles e aumentá-los de modo a
servirem melhor o bem comum, pelo que a solidariedade deve ser vivida como a
decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde. Estas convicções e práticas
de solidariedade, quando se fazem carne, abrem caminho a outras transformações
estruturais e tornam-nas possíveis. Uma mudança nas estruturas, sem se gerar
novas convicções e atitudes, fará com que essas mesmas estruturas, mais cedo ou
mais tarde, se tornem corruptas, pesadas e ineficazes.
190. Às vezes trata-se de ouvir o
clamor de povos inteiros, dos povos mais pobres da terra, porque «a paz
funda-se não só no respeito pelos direitos do homem, mas também no respeito
pelo direito dos povos». Lamentavelmente, até os direitos humanos podem ser
usados como justificação para uma defesa exacerbada dos direitos individuais ou
dos direitos dos povos mais ricos. Respeitando a independência e a cultura de
cada nação, é preciso recordar-se sempre de que o planeta é de toda a
humanidade e para toda a humanidade, e que o simples facto de ter nascido num
lugar com menores recursos ou menor desenvolvimento não justifica que algumas
pessoas vivam menos dignamente. É preciso repetir que «os mais favorecidos
devem renunciar a alguns dos seus direitos, para poderem colocar, com mais
liberalidade, os seus bens ao serviço dos outros». Para falarmos adequadamente
dos nossos direitos, é preciso alongar mais o olhar e abrir os ouvidos ao
clamor dos outros povos ou de outras regiões do próprio país. Precisamos de
crescer numa solidariedade que «permita a todos os povos tornarem-se artífices
do seu destino», tal como «cada homem é chamado a desenvolver-se».
191. Animados pelos seus
Pastores, os cristãos são chamados, em todo o lugar e circunstância, a ouvir o
clamor dos pobres, como bem se expressaram os Bispos do Brasil: «Desejamos
assumir, a cada dia, as alegrias e esperanças, as angústias e tristezas do povo
brasileiro, especialmente das populações das periferias urbanas e das zonas
rurais – sem terra, sem teto, sem pão, sem saúde – lesadas em seus direitos.
Vendo a sua miséria, ouvindo os seus clamores e conhecendo o seu sofrimento,
escandaliza-nos o fato de saber que existe alimento suficiente para todos e que
a fome se deve à má repartição dos bens e da renda. O problema se agrava com a
prática generalizada do desperdício».
192. Mas queremos ainda mais, o
nosso sonho voa mais alto. Não se fala apenas de garantir a comida ou um
decoroso «sustento» para todos, mas «prosperidade e civilização em seus
múltiplos aspectos». Isto engloba educação, acesso aos cuidados de saúde e
especialmente trabalho, porque, no trabalho livre, criativo, participativo e
solidário, o ser humano exprime e engrandece a dignidade da sua vida. O salário
justo permite o acesso adequado aos outros bens que estão destinados ao uso
comum.
Fidelidade ao Evangelho, para não
correr em vão
193. Este imperativo de ouvir o
clamor dos pobres faz-se carne em nós, quando no mais íntimo de nós mesmos nos
comovemos à vista do sofrimento alheio. Voltemos a ler alguns ensinamentos da
Palavra de Deus sobre a misericórdia, para que ressoem vigorosamente na vida da
Igreja. O Evangelho proclama: «Felizes os misericordiosos, porque alcançarão
misericórdia» (Mt 5, 7). O Apóstolo São Tiago ensina que a misericórdia para
com os outros permite-nos sair triunfantes no juízo divino: «Falai e procedei
como pessoas que hão-de ser julgadas segundo a lei da liberdade. Porque, quem
não pratica a misericórdia, será julgado sem misericórdia. Mas a misericórdia
não teme o julgamento» (2, 12-13). Neste texto, São Tiago aparece-nos como
herdeiro do que tinha de mais rico a espiritualidade judaica do pós-exílio, a
qual atribuía um especial valor salvífico à misericórdia: «Redime o teu pecado
pela justiça, e as tuas iniquidades, pela piedade para com os infelizes; talvez
isto consiga prolongar a tua prosperidade» (Dn 4, 24). Nesta mesma perspectiva,
a literatura sapiencial fala da esmola como exercício concreto da misericórdia
para com os necessitados: «A esmola livra da morte e limpa de todo o pecado»
(Tb 12, 9). E de forma ainda mais sensível se exprime Ben-Sirá: «A água apaga o
fogo ardente, e a esmola expia o pecado» (3, 30). Encontramos a mesma síntese
no Novo Testamento: «Mantende entre vós uma intensa caridade, porque o amor
cobre a multidão dos pecados» (1 Pd 4, 8). Esta verdade permeou profundamente a
mentalidade dos Padres da Igreja, tendo exercido uma resistência profética como
alternativa cultural face ao individualismo hedonista pagão. Recordemos apenas
um exemplo: «Tal como, em perigo de incêndio, correríamos a buscar água para o
apagar (...), o mesmo deveríamos fazer quando nos turvamos porque, da nossa
palha, irrompeu a chama do pecado; assim, quando se nos proporciona a ocasião
de uma obra cheia de misericórdia, alegremo-nos por ela como se fosse uma fonte
que nos é oferecida e na qual podemos extinguir o incêndio».
194. É uma mensagem tão clara,
tão directa, tão simples e eloquente que nenhuma hermenêutica eclesial tem o
direito de relativizar. A reflexão da Igreja sobre estes textos não deveria
ofuscar nem enfraquecer o seu sentido exortativo, mas antes ajudar a assumi-los
com coragem e ardor. Para quê complicar o que é tão simples? As elaborações
conceptuais hão-de favorecer o contacto com a realidade que pretendem explicar,
e não afastar-nos dela. Isto vale sobretudo para as exortações bíblicas que
convidam, com tanta determinação, ao amor fraterno, ao serviço humilde e
generoso, à justiça, à misericórdia para com o pobre. Jesus ensinou-nos este
caminho de reconhecimento do outro, com as suas palavras e com os seus gestos.
Para quê ofuscar o que é tão claro? Não nos preocupemos só com não cair em
erros doutrinais, mas também com ser fiéis a este caminho luminoso de vida e
sabedoria. Porque «é frequente dirigir aos defensores da “ortodoxia” a acusação
de passividade, de indulgência ou de cumplicidade culpáveis frente a situações
intoleráveis de injustiça e de regimes políticos que mantêm estas situações».
195. Quando São Paulo foi ter com
os Apóstolos a Jerusalém para discernir «se estava a correr ou tinha corrido em
vão» (Gal 2, 2), o critério-chave de autenticidade que lhe indicaram foi que
não se esquecesse dos pobres (cf. Gal 2, 10). Este critério importante para que
as comunidades paulinas não se deixassem arrastar pelo estilo de vida
individualista dos pagãos, tem uma grande actualidade no contexto actual em que
tende a desenvolver-se um novo paganismo individualista. A própria beleza do
Evangelho nem sempre a conseguimos manifestar adequadamente, mas há um sinal
que nunca deve faltar: a opção pelos últimos, por aqueles que a sociedade
descarta e lança fora.
196. Às vezes somos duros de
coração e de mente, esquecemo-nos, entretemo-nos, extasiamo-nos com as imensas
possibilidades de consumo e de distracção que esta sociedade oferece. Gera-se
assim uma espécie de alienação que nos afecta a todos, pois «alienada é a
sociedade que, nas suas formas de organização social, de produção e de consumo,
torna mais difícil a realização deste dom e a constituição dessa solidariedade
inter-humana».
O lugar privilegiado dos pobres
no povo de Deus
197. No coração de Deus, ocupam
lugar preferencial os pobres, tanto que até Ele mesmo «Se fez pobre» (2 Cor 8,
9). Todo o caminho da nossa redenção está assinalado pelos pobres. Esta
salvação veio a nós, através do «sim» duma jovem humilde, duma pequena povoação
perdida na periferia dum grande império. O Salvador nasceu num presépio, entre
animais, como sucedia com os filhos dos mais pobres; foi apresentado no Templo,
juntamente com dois pombinhos, a oferta de quem não podia permitir-se pagar um
cordeiro (cf. Lc 2, 24; Lv 5, 7); cresceu num lar de simples trabalhadores, e
trabalhou com suas mãos para ganhar o pão. Quando começou a anunciar o Reino,
seguiam-No multidões de deserdados, pondo assim em evidência o que Ele mesmo
dissera: «O Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Me ungiu para anunciar a
Boa-Nova aos pobres» (Lc 4, 18). A quantos sentiam o peso do sofrimento,
acabrunhados pela pobreza, assegurou que Deus os tinha no âmago do seu coração:
«Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus» (Lc 6, 20); e com eles
Se identificou: «Tive fome e destes-Me de comer», ensinando que a misericórdia
para com eles é a chave do Céu (cf. Mt 25, 34-40).
198. Para a Igreja, a opção pelos
pobres é mais uma categoria teológica que cultural, sociológica, política ou
filosófica. Deus «manifesta a sua misericórdia antes de mais» a eles. Esta
preferência divina tem consequências na vida de fé de todos os cristãos,
chamados a possuírem «os mesmos sentimentos que estão em Cristo Jesus» (Fl 2,
5). Inspirada por tal preferência, a Igreja fez uma opção pelos pobres,
entendida como uma «forma especial de primado na prática da caridade cristã,
testemunhada por toda a Tradição da Igreja». Como ensinava Bento XVI, esta
opção «está implícita na fé cristológica naquele Deus que Se fez pobre por nós,
para enriquecer-nos com sua pobreza». Por isso, desejo uma Igreja pobre para os
pobres. Estes têm muito para nos ensinar. Além de participar do sensus fidei,
nas suas próprias dores conhecem Cristo sofredor. É necessário que todos nos
deixemos evangelizar por eles. A nova evangelização é um convite a reconhecer a
força salvífica das suas vidas, e a colocá-los no centro do caminho da Igreja.
Somos chamados a descobrir Cristo neles: não só a emprestar-lhes a nossa voz
nas suas causas, mas também a ser seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e
a acolher a misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicar através deles.
199. O nosso compromisso não
consiste exclusivamente em acções ou em programas de promoção e assistência;
aquilo que o Espírito põe em movimento não é um excesso de activismo, mas
primariamente uma atenção prestada ao outro «considerando-o como um só consigo
mesmo». Esta atenção amiga é o início duma verdadeira preocupação pela sua
pessoa e, a partir dela, desejo procurar efectivamente o seu bem. Isto implica
apreciar o pobre na sua bondade própria, com o seu modo de ser, com a sua
cultura, com a sua forma de viver a fé. O amor autêntico é sempre
contemplativo, permitindo-nos servir o outro não por necessidade ou vaidade,
mas porque ele é belo, independentemente da sua aparência: «Do amor, pelo qual
uma pessoa é agradável a outra, depende que lhe dê algo de graça». Quando
amado, o pobre «é estimado como de alto valor», e isto diferencia a autêntica
opção pelos pobres de qualquer ideologia, de qualquer tentativa de utilizar os
pobres ao serviço de interesses pessoais ou políticos. Unicamente a partir
desta proximidade real e cordial é que podemos acompanhá-los adequadamente no seu
caminho de libertação. Só isto tornará possível que «os pobres se sintam, em
cada comunidade cristã, como “em casa”. Não seria, este estilo, a maior e mais
eficaz apresentação da boa nova do Reino?» Sem a opção preferencial pelos
pobres, «o anúncio do Evangelho – e este anúncio é a primeira caridade – corre
o risco de não ser compreendido ou de afogar-se naquele mar de palavras que a
actual sociedade da comunicação diariamente nos apresenta».
200. Dado que esta Exortação se
dirige aos membros da Igreja Católica, desejo afirmar, com mágoa, que a pior
discriminação que sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual. A imensa
maioria dos pobres possui uma especial abertura à fé; tem necessidade de Deus e
não podemos deixar de lhe oferecer a sua amizade, a sua bênção, a sua Palavra,
a celebração dos Sacramentos e a proposta dum caminho de crescimento e
amadurecimento na fé. A opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se,
principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária.
201. Ninguém deveria dizer que se
mantém longe dos pobres, porque as suas opções de vida implicam prestar mais
atenção a outras incumbências. Esta é uma desculpa frequente nos ambientes
académicos, empresariais ou profissionais, e até mesmo eclesiais. Embora se
possa dizer, em geral, que a vocação e a missão próprias dos fiéis leigos é a
transformação das diversas realidades terrenas para que toda a actividade
humana seja transformada pelo Evangelho, ninguém pode sentir-se exonerado da
preocupação pelos pobres e pela justiça social: «A conversão espiritual, a
intensidade do amor a Deus e ao próximo, o zelo pela justiça e pela paz, o
sentido evangélico dos pobres e da pobreza são exigidos a todos». Temo que
também estas palavras sejam objecto apenas de alguns comentários, sem
verdadeira incidência prática. Apesar disso, tenho confiança na abertura e nas
boas disposições dos cristãos e peço-vos que procureis, comunitariamente, novos
caminhos para acolher esta renovada proposta.
Economia e distribuição das
entradas
202. A necessidade de resolver as
causas estruturais da pobreza não pode esperar; e não apenas por uma exigência
pragmática de obter resultados e ordenar a sociedade, mas também para a curar
duma mazela que a torna frágil e indigna e que só poderá levá-la a novas crises.
Os planos de assistência, que acorrem a determinadas emergências, deveriam
considerar-se apenas como respostas provisórias. Enquanto não forem
radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia
absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas
estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e,
em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais.
203. A dignidade de cada pessoa
humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política
económica, mas às vezes parecem somente apêndices adicionados de fora para
completar um discurso político sem perspectivas nem programas de verdadeiro
desenvolvimento integral. Quantas palavras se tornaram molestas para este
sistema! Molesta que se fale de ética, molesta que se fale de solidariedade
mundial, molesta que se fale de distribuição dos bens, molesta que se fale de
defender os postos de trabalho, molesta que se fale da dignidade dos fracos,
molesta que se fale de um Deus que exige um compromisso em prol da justiça.
Outras vezes acontece que estas palavras se tornam objecto duma manipulação
oportunista que as desonra. A cómoda indiferença diante destas questões esvazia
a nossa vida e as nossas palavras de todo o significado. A vocação dum
empresário é uma nobre tarefa, desde que se deixe interpelar por um sentido
mais amplo da vida; isto permite-lhe servir verdadeiramente o bem comum com o
seu esforço por multiplicar e tornar os bens deste mundo mais acessíveis a
todos.
204. Não podemos mais confiar nas
forças cegas e na mão invisível do mercado. O crescimento equitativo exige algo
mais do que o crescimento económico, embora o pressuponha; requer decisões,
programas, mecanismos e processos especificamente orientados para uma melhor
distribuição das entradas, para a criação de oportunidades de trabalho, para
uma promoção integral dos pobres que supere o mero assistencialismo. Longe de
mim propor um populismo irresponsável, mas a economia não pode mais recorrer a
remédios que são um novo veneno, como quando se pretende aumentar a
rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando assim novos excluídos.
205. Peço a Deus que cresça o
número de políticos capazes de entrar num autêntico diálogo que vise efectivamente
sanar as raízes profundas e não a aparência dos males do nosso mundo. A
política, tão denegrida, é uma sublime vocação, é uma das formas mais preciosas
da caridade, porque busca o bem comum. Temos de nos convencer que a caridade «é
o princípio não só das micro-relações estabelecidas entre amigos, na família,
no pequeno grupo, mas também das macro-relações como relacionamentos sociais,
económicos, políticos». Rezo ao Senhor para que nos conceda mais políticos, que
tenham verdadeiramente a peito a sociedade, o povo, a vida dos pobres. É
indispensável que os governantes e o poder financeiro levantem o olhar e
alarguem as suas perspectivas, procurando que haja trabalho digno, instrução e
cuidados sanitários para todos os cidadãos. E porque não acudirem a Deus
pedindo-Lhe que inspire os seus planos? Estou convencido de que, a partir duma
abertura à transcendência, poder-se-ia formar uma nova mentalidade política e
económica que ajudaria a superar a dicotomia absoluta entre a economia e o bem
comum social.
206. A economia – como indica o
próprio termo – deveria ser a arte de alcançar uma adequada administração da
casa comum, que é o mundo inteiro. Todo o acto económico duma certa
envergadura, que se realiza em qualquer parte do planeta, repercute-se no mundo
inteiro, pelo que nenhum Governo pode agir à margem duma responsabilidade
comum. Na realidade, torna-se cada vez mais difícil encontrar soluções a nível
local para as enormes contradições globais, pelo que a política local se satura
de problemas por resolver. Se realmente queremos alcançar uma economia global
saudável, precisamos, neste momento da história, de um modo mais eficiente de
interacção que, sem prejuízo da soberania das nações, assegure o bem-estar
económico a todos os países e não apenas a alguns.
207. E qualquer comunidade da
Igreja, na medida em que pretender subsistir tranquila sem se ocupar
criativamente nem cooperar de forma eficaz para que os pobres vivam com
dignidade e haja a inclusão de todos, correrá também o risco da sua dissolução,
mesmo que fale de temas sociais ou critique os Governos. Facilmente acabará
submersa pelo mundanismo espiritual, dissimulado em práticas religiosas,
reuniões infecundas ou discursos vazios.
208. Se alguém se sentir ofendido
com as minhas palavras, saiba que as exprimo com estima e com a melhor das
intenções, longe de qualquer interesse pessoal ou ideologia política. A minha
palavra não é a dum inimigo nem a dum opositor. A mim interessa-me apenas
procurar que, quantos vivem escravizados por uma mentalidade individualista,
indiferente e egoísta, possam libertar-se dessas cadeias indignas e alcancem um
estilo de vida e de pensamento mais humano, mais nobre, mais fecundo, que
dignifique a sua passagem por esta terra.
Cuidar da fragilidade
209. Jesus, o evangelizador por
excelência e o Evangelho em pessoa, identificou-Se especialmente com os mais
pequeninos (cf. Mt 25, 40). Isto recorda-nos, a todos os cristãos, que somos
chamados a cuidar dos mais frágeis da Terra. Mas, no modelo «do êxito» e
«individualista» em vigor, parece que não faz sentido investir para que os
lentos, fracos ou menos dotados possam também singrar na vida.
210. Embora aparentemente não nos
traga benefícios tangíveis e imediatos, é indispensável prestar atenção e
debruçar-nos sobre as novas formas de pobreza e fragilidade, nas quais somos
chamados a reconhecer Cristo sofredor: os sem abrigo, os toxicodependentes, os
refugiados, os povos indígenas, os idosos cada vez mais sós e abandonados, etc.
Os migrantes representam um desafio especial para mim, por ser Pastor duma
Igreja sem fronteiras que se sente mãe de todos. Por isso, exorto os países a
uma abertura generosa, que, em vez de temer a destruição da identidade local,
seja capaz de criar novas sínteses culturais. Como são belas as cidades que
superam a desconfiança doentia e integram os que são diferentes, fazendo desta
integração um novo factor de progresso! Como são encantadoras as cidades que,
já no seu projecto arquitectónico, estão cheias de espaços que unem,
relacionam, favorecem o reconhecimento do outro!
211. Sempre me angustiou a
situação das pessoas que são objecto das diferentes formas de tráfico. Quem
dera que se ouvisse o grito de Deus, perguntando a todos nós: «Onde está o teu
irmão?» (Gn 4, 9). Onde está o teu irmão escravo? Onde está o irmão que estás
matando cada dia na pequena fábrica clandestina, na rede da prostituição, nas
crianças usadas para a mendicidade, naquele que tem de trabalhar às escondidas
porque não foi regularizado? Não nos façamos de distraídos! Há muita cumplicidade...
A pergunta é para todos! Nas nossas cidades, está instalado este crime mafioso
e aberrante, e muitos têm as mãos cheias de sangue devido a uma cómoda e muda
cumplicidade.
212. Duplamente pobres são as
mulheres que padecem situações de exclusão, maus-tratos e violência, porque
frequentemente têm menores possibilidades de defender os seus direitos. E
todavia, também entre elas, encontramos continuamente os mais admiráveis gestos
de heroísmo quotidiano na defesa e cuidado da fragilidade das suas famílias.
213. Entre estes seres frágeis,
de que a Igreja quer cuidar com predilecção, estão também os nascituros, os
mais inermes e inocentes de todos, a quem hoje se quer negar a dignidade humana
para poder fazer deles o que apetece, tirando-lhes a vida e promovendo
legislações para que ninguém o possa impedir. Muitas vezes, para ridiculizar
jocosamente a defesa que a Igreja faz da vida dos nascituros, procura-se
apresentar a sua posição como ideológica, obscurantista e conservadora; e no
entanto esta defesa da vida nascente está intimamente ligada à defesa de
qualquer direito humano. Supõe a convicção de que um ser humano é sempre
sagrado e inviolável, em qualquer situação e em cada etapa do seu
desenvolvimento. É fim em si mesmo, e nunca um meio para resolver outras
dificuldades. Se cai esta convicção, não restam fundamentos sólidos e
permanentes para a defesa dos direitos humanos, que ficariam sempre sujeitos às
conveniências contingentes dos poderosos de turno. Por si só a razão é
suficiente para se reconhecer o valor inviolável de qualquer vida humana, mas,
se a olhamos também a partir da fé, «toda a violação da dignidade pessoal do
ser humano clama por vingança junto de Deus e torna-se ofensa ao Criador do
homem».
214. E precisamente porque é uma
questão que mexe com a coerência interna da nossa mensagem sobre o valor da
pessoa humana, não se deve esperar que a Igreja altere a sua posição sobre esta
questão. A propósito, quero ser completamente honesto. Este não é um assunto
sujeito a supostas reformas ou «modernizações». Não é opção progressista
pretender resolver os problemas, eliminando uma vida humana. Mas é verdade
também que temos feito pouco para acompanhar adequadamente as mulheres que
estão em situações muito duras, nas quais o aborto lhes aparece como uma
solução rápida para as suas profundas angústias, particularmente quando a vida
que cresce nelas surgiu como resultado duma violência ou num contexto de
extrema pobreza. Quem pode deixar de compreender estas situações de tamanho
sofrimento?
215. Há outros seres frágeis e
indefesos, que muitas vezes ficam à mercê dos interesses económicos ou dum uso
indiscriminado. Refiro-me ao conjunto da criação. Nós, os seres humanos, não
somos meramente beneficiários, mas guardiões das outras criaturas. Pela nossa
realidade corpórea, Deus uniu-nos tão estreitamente ao mundo que nos rodeia,
que a desertificação do solo é como uma doença para cada um, e podemos lamentar
a extinção de uma espécie como se fosse uma mutilação. Não deixemos que, à
nossa passagem, fiquem sinais de destruição e de morte que afectem a nossa vida
e a das gerações futuras. Neste sentido, faço meu o expressivo e profético
lamento que, já há vários anos, formularam os Bispos das Filipinas: «Uma
incrível variedade de insectos vivia no bosque; e estavam ocupados com todo o
tipo de tarefas. (...) Os pássaros voavam pelo ar, as suas penas brilhantes e
os seus variados gorjeios acrescentavam cor e melodia ao verde dos bosques.
(...) Deus quis que esta terra fosse para nós, suas criaturas especiais, mas
não para a podermos destruir ou transformar num baldio. (...) Depois de uma
única noite de chuva, observa os rios de castanho-chocolate da tua localidade e
lembra-te que estão a arrastar o sangue vivo da terra para o mar. (...) Como
poderão os peixes nadar em esgotos como o rio Pasig e muitos outros rios que
poluímos? Quem transformou o maravilhoso mundo marinho em cemitérios
subaquáticos despojados de vida e de cor?»
216. Pequenos mas fortes no amor
de Deus, como São Francisco de Assis, todos nós, cristãos, somos chamados a
cuidar da fragilidade do povo e do mundo em que vivemos.
3. O bem comum e a paz social
217. Falámos muito sobre a
alegria e o amor, mas a Palavra de Deus menciona também o fruto da paz (cf. Gal
5, 22).
218. A paz social não pode ser entendida
como irenismo ou como mera ausência de violência obtida pela imposição de uma
parte sobre as outras. Também seria uma paz falsa aquela que servisse como
desculpa para justificar uma organização social que silencie ou tranquilize os
mais pobres, de modo que aqueles que gozam dos maiores benefícios possam manter
o seu estilo de vida sem sobressaltos, enquanto os outros sobrevivem como
podem. As reivindicações sociais, que têm a ver com a distribuição das
entradas, a inclusão social dos pobres e os direitos humanos não podem ser
sufocados com o pretexto de construir um consenso de escritório ou uma paz
efémera para uma minoria feliz. A dignidade da pessoa humana e o bem comum
estão por cima da tranquilidade de alguns que não querem renunciar aos seus privilégios.
Quando estes valores são afectados, é necessária uma voz profética.
219. E a paz também «não se reduz
a uma ausência de guerra, fruto do equilíbrio sempre precário das forças.
Constrói-se, dia a dia, na busca duma ordem querida por Deus, que traz consigo
uma justiça mais perfeita entre os homens». Enfim, uma paz que não surja como
fruto do desenvolvimento integral de todos, não terá futuro e será sempre
semente de novos conflitos e variadas formas de violência.
220. Em cada nação, os habitantes
desenvolvem a dimensão social da sua vida, configurando-se como cidadãos
responsáveis dentro de um povo e não como massa arrastada pelas forças
dominantes. Lembremo-nos que «ser cidadão fiel é uma virtude, e a participação
na vida política é uma obrigação moral». Mas, tornar-se um povo é algo mais,
exigindo um processo constante no qual cada nova geração está envolvida. É um
trabalho lento e árduo que exige querer integrar-se e aprender a fazê-lo até se
desenvolver uma cultura do encontro numa harmonia pluriforme.
221. Para avançar nesta
construção de um povo em paz, justiça e fraternidade, há quatro princípios
relacionados com tensões bipolares próprias de toda a realidade social. Derivam
dos grandes postulados da Doutrina Social da Igreja, que constituem o «primeiro
e fundamental parâmetro de referência para a interpretação e o exame dos
fenómenos sociais». À luz deles, desejo agora propor estes quatro princípios
que orientam especificamente o desenvolvimento da convivência social e a
construção de um povo onde as diferenças se harmonizam dentro de um projecto
comum. Faço-o na convicção de que a sua aplicação pode ser um verdadeiro
caminho para a paz dentro de cada nação e no mundo inteiro.
O tempo é superior ao espaço
222. Existe uma tensão bipolar
entre a plenitude e o limite. A plenitude gera a vontade de possuir tudo, e o
limite é o muro que nos aparece pela frente. O «tempo», considerado em sentido
amplo, faz referimento à plenitude como expressão do horizonte que se abre
diante de nós, e o momento é expressão do limite que se vive num espaço
circunscrito. Os cidadãos vivem em tensão entre a conjuntura do momento e a luz
do tempo, do horizonte maior, da utopia que nos abre ao futuro como causa final
que atrai. Daqui surge um primeiro princípio para progredir na construção de um
povo: o tempo é superior ao espaço.
223. Este princípio permite
trabalhar a longo prazo, sem a obsessão pelos resultados imediatos. Ajuda a
suportar, com paciência, situações difíceis e hostis ou as mudanças de planos
que o dinamismo da realidade impõe. É um convite a assumir a tensão entre
plenitude e limite, dando prioridade ao tempo. Um dos pecados que, às vezes, se
nota na actividade sociopolítica é privilegiar os espaços de poder em vez dos
tempos dos processos. Dar prioridade ao espaço leva-nos a proceder como loucos
para resolver tudo no momento presente, para tentar tomar posse de todos os
espaços de poder e autoafirmação. É cristalizar os processos e pretender
pará-los. Dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar processos do que
possuir espaços. O tempo ordena os espaços, ilumina-os e transforma-os em elos
duma cadeia em constante crescimento, sem marcha atrás. Trata-se de privilegiar
as acções que geram novos dinamismos na sociedade e comprometem outras pessoas e
grupos que os desenvolverão até frutificar em acontecimentos históricos
importantes. Sem ansiedade, mas com convicções claras e tenazes.
224. Às vezes interrogo-me sobre
quais são as pessoas que, no mundo actual, se preocupam realmente mais com
gerar processos que construam um povo do que com obter resultados imediatos que
produzam ganhos políticos fáceis, rápidos e efémeros, mas que não constroem a
plenitude humana. A história julgá-los-á talvez com aquele critério enunciado
por Romano Guardini: «O único padrão para avaliar justamente uma época é
perguntar-se até que ponto, nela, se desenvolve e alcança uma autêntica razão
de ser a plenitude da existência humana, de acordo com o carácter peculiar e as
possibilidades da dita época».
225. Este critério é muito
apropriado também para a evangelização, que exige ter presente o horizonte,
adoptar os processos possíveis e a estrada longa. O próprio Senhor, na sua vida
mortal, deu a entender várias vezes aos seus discípulos que havia coisas que
ainda não podiam compreender e era necessário esperar o Espírito Santo (cf. Jo
16, 12-13). A parábola do trigo e do joio (cf. Mt 13, 24-30) descreve um
aspecto importante de evangelização que consiste em mostrar como o inimigo pode
ocupar o espaço do Reino e causar dano com o joio, mas é vencido pela bondade
do trigo que se manifesta com o tempo.
A unidade prevalece sobre o
conflito
226. O conflito não pode ser
ignorado ou dissimulado; deve ser aceitado. Mas, se ficamos encurralados nele,
perdemos a perspectiva, os horizontes reduzem-se e a própria realidade fica
fragmentada. Quando paramos na conjuntura conflitual, perdemos o sentido da
unidade profunda da realidade.
227. Perante o conflito, alguns
limitam-se a olhá-lo e passam adiante como se nada fosse, lavam-se as mãos para
poder continuar com a sua vida. Outros entram de tal maneira no conflito que
ficam prisioneiros, perdem o horizonte, projectam nas instituições as suas
próprias confusões e insatisfações e, assim, a unidade torna-se impossível. Mas
há uma terceira forma, a mais adequada, de enfrentar o conflito: é aceitar
suportar o conflito, resolvê-lo e transformá-lo no elo de ligação de um novo
processo. «Felizes os pacificadores» (Mt 5, 9)!
228. Deste modo, torna-se
possível desenvolver uma comunhão nas diferenças, que pode ser facilitada só
por pessoas magnânimas que têm a coragem de ultrapassar a superfície conflitual
e consideram os outros na sua dignidade mais profunda. Por isso, é necessário
postular um princípio que é indispensável para construir a amizade social: a
unidade é superior ao conflito. A solidariedade, entendida no seu sentido mais
profundo e desafiador, torna-se assim um estilo de construção da história, um
âmbito vital onde os conflitos, as tensões e os opostos podem alcançar uma
unidade multifacetada que gera nova vida. Não é apostar no sincretismo ou na
absorção de um no outro, mas na resolução num plano superior que conserva em si
as preciosas potencialidades das polaridades em contraste.
229. Este critério evangélico
recorda-nos que Cristo tudo unificou em Si: céu e terra, Deus e homem, tempo e
eternidade, carne e espírito, pessoa e sociedade. O sinal distintivo desta
unidade e reconciliação de tudo n’Ele é a paz. Cristo «é a nossa paz» (Ef 2,
14). O anúncio do Evangelho começa sempre com a saudação de paz; e a paz coroa
e cimenta em cada momento as relações entre os discípulos. A paz é possível,
porque o Senhor venceu o mundo e sua permanente conflitualidade, «pacificando
pelo sangue da sua cruz» (Col 1, 20). Entretanto, se examinarmos a fundo estes
textos bíblicos, descobriremos que o primeiro âmbito onde somos chamados a
conquistar esta pacificação nas diferenças é a própria interioridade, a própria
vida sempre ameaçada pela dispersão dialéctica. Com corações despedaçados em
milhares de fragmentos, será difícil construir uma verdadeira paz social.
230. O anúncio de paz não é a
proclamação duma paz negociada, mas a convicção de que a unidade do Espírito
harmoniza todas as diversidades. Supera qualquer conflito numa nova e
promissora síntese. A diversidade é bela, quando aceita entrar constantemente
num processo de reconciliação até selar uma espécie de pacto cultural que faça
surgir uma «diversidade reconciliada», como justamente ensinaram os Bispos da
República Democrática do Congo: «A diversidade das nossas etnias é uma riqueza.
(…) Só com a unidade, a conversão dos corações e a reconciliação é que
poderemos fazer avançar o nosso país».
A realidade é mais importante do
que a ideia
231. Existe também uma tensão
bipolar entre a ideia e a realidade: a realidade simplesmente é, a ideia
elabora-se. Entre as duas, deve estabelecer-se um diálogo constante, evitando
que a ideia acabe por separar-se da realidade. É perigoso viver no reino só da
palavra, da imagem, do sofisma. Por isso, há que postular um terceiro
princípio: a realidade é superior à ideia. Isto supõe evitar várias formas de
ocultar a realidade: os purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os
nominalismos declaracionistas, os projectos mais formais que reais, os
fundamentalismos anti-históricos, os eticismos sem bondade, os intelectualismos
sem sabedoria.
232. A ideia – as elaborações
conceituais – está ao serviço da captação, compreensão e condução da realidade.
A ideia desligada da realidade dá origem a idealismos e nominalismos ineficazes
que, no máximo, classificam ou definem, mas não empenham. O que empenha é a
realidade iluminada pelo raciocínio. É preciso passar do nominalismo formal à
objectividade harmoniosa. Caso contrário, manipula-se a verdade, do mesmo modo
que se substitui a ginástica pela cosmética. Há políticos – e também líderes
religiosos – que se interrogam por que motivo o povo não os compreende nem
segue, se as suas propostas são tão lógicas e claras. Possivelmente é porque se
instalaram no reino das puras ideias e reduziram a política ou a fé à retórica;
outros esqueceram a simplicidade e importaram de fora uma racionalidade alheia
à gente.
233. A realidade é superior à
ideia. Este critério está ligado à encarnação da Palavra e ao seu cumprimento:
«Reconheceis que o espírito é de Deus por isto: todo o espírito que confessa
Jesus Cristo que veio em carne mortal é de Deus». (1 Jo 4, 2). O critério da
realidade, duma Palavra já encarnada e sempre procurando encarnar-se, é
essencial à evangelização. Por um lado, leva-nos a valorizar a história da
Igreja como história de salvação, a recordar os nossos Santos que inculturaram
o Evangelho na vida dos nossos povos, a recolher a rica tradição bimilenária da
Igreja, sem pretender elaborar um pensamento desligado deste tesouro como se
quiséssemos inventar o Evangelho. Por outro lado, este critério impele-nos a
pôr em prática a Palavra, a realizar obras de justiça e caridade nas quais se
torne fecunda esta Palavra. Não pôr em prática, não levar à realidade a Palavra
é construir sobre a areia, permanecer na pura ideia e degenerar em intimismos e
gnosticismos que não dão fruto, que esterilizam o seu dinamismo.
O todo é superior à parte
234. Entre a globalização e a
localização também se gera uma tensão. É preciso prestar atenção à dimensão
global para não cair numa mesquinha quotidianidade. Ao mesmo tempo convém não
perder de vista o que é local, que nos faz caminhar com os pés por terra. As
duas coisas unidas impedem de cair em algum destes dois extremos: o primeiro,
que os cidadãos vivam num universalismo abstracto e globalizante, miméticos
passageiros do carro de apoio, admirando os fogos de artifício do mundo, que é
de outros, com a boca aberta e aplausos programados; o outro extremo é que se
transformem num museu folclórico de eremitas localistas, condenados a repetir
sempre as mesmas coisas, incapazes de se deixar interpelar pelo que é diverso e
de apreciar a beleza que Deus espalha fora das suas fronteiras.
235. O todo é mais do que a
parte, sendo também mais do que a simples soma delas. Portanto, não se deve
viver demasiado obcecados por questões limitadas e particulares. É preciso
alargar sempre o olhar para reconhecer um bem maior que trará benefícios a
todos nós. Mas há que o fazer sem se evadir nem se desenraizar. É necessário mergulhar
as raízes na terra fértil e na história do próprio lugar, que é um dom de Deus.
Trabalha-se no pequeno, no que está próximo, mas com uma perspectiva mais
ampla. Da mesma forma, uma pessoa que conserva a sua peculiaridade pessoal e
não esconde a sua identidade, quando se integra cordialmente numa comunidade
não se aniquila, mas recebe sempre novos estímulos para o seu próprio
desenvolvimento. Não é a esfera global que aniquila, nem a parte isolada que
esteriliza.
236. Aqui o modelo não é a
esfera, pois não é superior às partes e, nela, cada ponto é equidistante do
centro, não havendo diferenças entre um ponto e o outro. O modelo é o poliedro,
que reflecte a confluência de todas as partes que nele mantêm a sua
originalidade. Tanto a acção pastoral como a acção política procuram reunir
nesse poliedro o melhor de cada um. Ali entram os pobres com a sua cultura, os
seus projectos e as suas próprias potencialidades. Até mesmo as pessoas que
possam ser criticadas pelos seus erros, têm algo a oferecer que não se deve
perder. É a união dos povos, que, na ordem universal, conservam a sua própria
peculiaridade; é a totalidade das pessoas numa sociedade que procura um bem
comum que verdadeiramente incorpore a todos.
237. A nós, cristãos, este
princípio fala-nos também da totalidade ou integridade do Evangelho que a
Igreja nos transmite e envia a pregar. A sua riqueza plena incorpora académicos
e operários, empresários e artistas, incorpora todos. A «mística popular»
acolhe, a seu modo, o Evangelho inteiro e encarna-o em expressões de oração, de
fraternidade, de justiça, de luta e de festa. A Boa Nova é a alegria dum Pai
que não quer que se perca nenhum dos seus pequeninos. Assim nasce a alegria no
Bom Pastor que encontra a ovelha perdida e a reintegra no seu rebanho. O
Evangelho é fermento que leveda toda a massa e cidade que brilha no cimo do
monte, iluminando todos os povos. O Evangelho possui um critério de totalidade
que lhe é intrínseco: não cessa de ser Boa Nova enquanto não for anunciado a
todos, enquanto não fecundar e curar todas as dimensões do homem, enquanto não
unir todos os homens à volta da mesa do Reino. O todo é superior à parte.
4. O diálogo social como
contribuição para a paz
238. A evangelização implica
também um caminho de diálogo. Neste momento, existem sobretudo três campos de
diálogo onde a Igreja deve estar presente, cumprindo um serviço a favor do
pleno desenvolvimento do ser humano e procurando o bem comum: o diálogo com os
Estados, com a sociedade – que inclui o diálogo com as culturas e as ciências –
e com os outros crentes que não fazem parte da Igreja Católica. Em todos os
casos, «a Igreja fala a partir da luz que a fé lhe dá», oferece a sua
experiência de dois mil anos e conserva sempre na memória as vidas e
sofrimentos dos seres humanos. Isto ultrapassa a razão humana, mas também tem
um significado que pode enriquecer a quantos não crêem e convida a razão a
alargar as suas perspectivas.
239. A Igreja proclama o
«evangelho da paz» (Ef 6, 15) e está aberta à colaboração com todas as autoridades
nacionais e internacionais para cuidar deste bem universal tão grande. Ao
anunciar Jesus Cristo, que é a paz em pessoa (cf. Ef 2, 14), a nova
evangelização incentiva todo o baptizado a ser instrumento de pacificação e
testemunha credível duma vida reconciliada. É hora de saber como projectar,
numa cultura que privilegie o diálogo como forma de encontro, a busca de
consenso e de acordos mas sem a separar da preocupação por uma sociedade justa,
capaz de memória e sem exclusões. O autor principal, o sujeito histórico deste
processo, é a gente e a sua cultura, não uma classe, uma fracção, um grupo, uma
elite. Não precisamos de um projecto de poucos para poucos, ou de uma minoria
esclarecida ou testemunhal que se aproprie de um sentimento colectivo. Trata-se
de um acordo para viver juntos, de um pacto social e cultural.
240. O cuidado e a promoção do
bem comum da sociedade compete ao Estado. Este, com base nos princípios de
subsidiariedade e solidariedade e com um grande esforço de diálogo político e
criação de consensos, desempenha um papel fundamental – que não pode ser
delegado – na busca do desenvolvimento integral de todos. Este papel exige, nas
circunstâncias actuais, uma profunda humildade social.
241. No diálogo com o Estado e
com a sociedade, a Igreja não tem soluções para todas as questões específicas.
Mas, juntamente com as várias forças sociais, acompanha as propostas que melhor
correspondam à dignidade da pessoa humana e ao bem comum. Ao fazê-lo, propõe
sempre com clareza os valores fundamentais da existência humana, para
transmitir convicções que possam depois traduzir-se em acções políticas.
O diálogo entre a fé, a razão e
as ciências
242. O diálogo entre ciência e fé
também faz parte da acção evangelizadora que favorece a paz. O cientificismo e
o positivismo recusam-se a «admitir, como válidas, formas de conhecimento
distintas daquelas que são próprias das ciências positivas». A Igreja propõe
outro caminho, que exige uma síntese entre um uso responsável das metodologias
próprias das ciências empíricas e os outros saberes como a filosofia, a
teologia, e a própria fé que eleva o ser humano até ao mistério que transcende
a natureza e a inteligência humana. A fé não tem medo da razão; pelo contrário,
procura-a e tem confiança nela, porque «a luz da razão e a luz da fé provêm
ambas de Deus», e não se podem contradizer entre si. A evangelização está
atenta aos progressos científicos para os iluminar com a luz da fé e da lei
natural, tendo em vista procurar que sempre respeitem a centralidade e o valor
supremo da pessoa humana em todas as fases da sua existência. Toda a sociedade
pode ser enriquecida através deste diálogo que abre novos horizontes ao
pensamento e amplia as possibilidades da razão. Também este é um caminho de
harmonia e pacificação.
243. A Igreja não pretende deter
o progresso admirável das ciências. Pelo contrário, alegra-se e inclusivamente
desfruta reconhecendo o enorme potencial que Deus deu à mente humana. Quando o
progresso das ciências, mantendo-se com rigor académico no campo do seu objecto
específico, torna evidente uma determinada conclusão que a razão não pode
negar, a fé não a contradiz. Nem os crentes podem pretender que uma opinião
científica que lhes agrada – e que nem sequer foi suficientemente comprovada –
adquira o peso dum dogma de fé. Em certas ocasiões, porém, alguns cientistas
vão mais além do objecto formal da sua disciplina e exageram com afirmações ou
conclusões que extravasam o campo da própria ciência. Neste caso, não é a razão
que se propõe, mas uma determinada ideologia que fecha o caminho a um diálogo
autêntico, pacífico e frutuoso.
O diálogo ecuménico
244. O compromisso ecuménico
corresponde à oração do Senhor Jesus pedindo «que todos sejam um só» (Jo 17,
21). A credibilidade do anúncio cristão seria muito maior, se os cristãos
superassem as suas divisões e a Igreja realizasse «a plenitude da catolicidade
que lhe é própria naqueles filhos que, embora incorporados pelo Baptismo, estão
separados da sua plena comunhão». Devemos sempre lembrar-nos de que somos peregrinos,
e peregrinamos juntos. Para isso, devemos abrir o coração ao companheiro de
estrada sem medos nem desconfianças, e olhar primariamente para o que
procuramos: a paz no rosto do único Deus. O abrir-se ao outro tem algo de
artesanal, a paz é artesanal. Jesus disse-nos: «Felizes os pacificadores» (Mt
5, 9). Neste esforço, mesmo entre nós, cumpre-se a antiga profecia:
«Transformarão as suas espadas em relhas de arado» (Is 2, 4).
245. Sob esta luz, o ecumenismo é
uma contribuição para a unidade da família humana. A presença no Sínodo do
Patriarca de Constantinopla, Sua Santidade Bartolomeu I, e do Arcebispo de
Cantuária, Sua Graça Rowan Douglas Williams, foi um verdadeiro dom de Deus e um
precioso testemunho cristão.
246. Dada a gravidade do
contra-testemunho da divisão entre cristãos, sobretudo na Ásia e na África,
torna-se urgente a busca de caminhos de unidade. Os missionários, nesses
continentes, referem repetidamente as críticas, queixas e sarcasmos que recebem
por causa do escândalo dos cristãos divididos. Se nos concentrarmos nas
convicções que nos unem e recordarmos o princípio da hierarquia das verdades,
poderemos caminhar decididamente para formas comuns de anúncio, de serviço e de
testemunho. A imensa multidão que não recebeu o anúncio de Jesus Cristo não
pode deixar-nos indiferentes. Por isso, o esforço por uma unidade que facilite
a recepção de Jesus Cristo deixa de ser mera diplomacia ou um dever forçado
para se transformar num caminho imprescindível da evangelização. Os sinais de
divisão entre cristãos, em países que já estão dilacerados pela violência,
juntam outros motivos de conflito vindos da parte de quem deveria ser um activo
fermento de paz. São tantas e tão valiosas as coisas que nos unem! E, se
realmente acreditamos na acção livre e generosa do Espírito, quantas coisas
podemos aprender uns dos outros! Não se trata apenas de receber informações
sobre os outros para os conhecermos melhor, mas de recolher o que o Espírito
semeou neles como um dom também para nós. Só para dar um exemplo, no diálogo
com os irmãos ortodoxos, nós, os católicos, temos a possibilidade de aprender
algo mais sobre o significado da colegialidade episcopal e sobre a sua
experiência da sinodalidade. Através dum intercâmbio de dons, o Espírito pode
conduzir-nos cada vez mais para a verdade e o bem.
As relações com o Judaísmo
247. Um olhar muito especial é
dirigido ao povo judeu, cuja Aliança com Deus nunca foi revogada, porque «os
dons e o chamamento de Deus são irrevogáveis» (Rm 11, 29). A Igreja, que
partilha com o Judaísmo uma parte importante das Escrituras Sagradas, considera
o povo da Aliança e a sua fé como uma raiz sagrada da própria identidade cristã
(cf. Rm 11, 16-18). Como cristãos, não podemos considerar o Judaísmo como uma
religião alheia, nem incluímos os judeus entre quantos são chamados a deixar os
ídolos para se converter ao verdadeiro Deus (cf. 1 Ts 1, 9). Juntamente com
eles, acreditamos no único Deus que actua na história, e acolhemos, com eles, a
Palavra revelada comum.
248. O diálogo e a amizade com os
filhos de Israel fazem parte da vida dos discípulos de Jesus. O afecto que se
desenvolveu leva-nos a lamentar, sincera e amargamente, as terríveis
perseguições de que foram e são objecto, particularmente aquelas que envolvem
ou envolveram cristãos.
249. Deus continua a operar no
povo da Primeira Aliança e faz nascer tesouros de sabedoria que brotam do seu
encontro com a Palavra divina. Por isso, a Igreja também se enriquece quando
recolhe os valores do Judaísmo. Embora algumas convicções cristãs sejam inaceitáveis
para o Judaísmo e a Igreja não possa deixar de anunciar Jesus como Senhor e
Messias, há uma rica complementaridade que nos permite ler juntos os textos da
Bíblia hebraica e ajudar-nos mutuamente a desentranhar as riquezas da Palavra,
bem como compartilhar muitas convicções éticas e a preocupação comum pela
justiça e o desenvolvimento dos povos.
O diálogo inter-religioso
250. Uma atitude de abertura na
verdade e no amor deve caracterizar o diálogo com os crentes das religiões
não-cristãs, apesar dos vários obstáculos e dificuldades, de modo particular os
fundamentalismos de ambos os lados. Este diálogo inter-religioso é uma condição
necessária para a paz no mundo e, por conseguinte, é um dever para os cristãos
e também para outras comunidades religiosas. Este diálogo é, em primeiro lugar,
uma conversa sobre a vida humana ou simplesmente – como propõem os Bispos da
Índia – «estar aberto a eles, compartilhando as suas alegrias e penas». Assim
aprendemos a aceitar os outros, na sua maneira diferente de ser, de pensar e de
se exprimir. Com este método, poderemos assumir juntos o dever de servir a
justiça e a paz, que deverá tornar-se um critério básico de todo o intercâmbio.
Um diálogo, no qual se procurem a paz e a justiça social, é em si mesmo, para além
do aspecto meramente pragmático, um compromisso ético que cria novas condições
sociais. Os esforços à volta dum tema específico podem transformar-se num
processo em que, através da escuta do outro, ambas as partes encontram
purificação e enriquecimento. Portanto, estes esforços também podem ter o
significado de amor à verdade.
251. Neste diálogo, sempre amável
e cordial, nunca se deve descuidar o vínculo essencial entre diálogo e anúncio,
que leva a Igreja a manter e intensificar as relações com os não-cristãos. Um
sincretismo conciliador seria, no fundo, um totalitarismo de quantos pretendem
conciliar prescindindo de valores que os transcendem e dos quais não são donos.
A verdadeira abertura implica conservar-se firme nas próprias convicções mais
profundas, com uma identidade clara e feliz, mas «disponível para compreender
as do outro» e «sabendo que o diálogo pode enriquecer a ambos». Não nos serve
uma abertura diplomática que diga sim a tudo para evitar problemas, porque
seria um modo de enganar o outro e negar-lhe o bem que se recebeu como um dom
para partilhar com generosidade. Longe de se contraporem, a evangelização e o
diálogo inter-religioso apoiam-se e alimentam-se reciprocamente.
252. Neste tempo, adquire grande
importância a relação com os crentes do Islão, hoje particularmente presentes
em muitos países de tradição cristã, onde podem celebrar livremente o seu culto
e viver integrados na sociedade. Não se deve jamais esquecer que eles
«professam seguir a fé de Abraão, e connosco adoram o Deus único e
misericordioso, que há-de julgar os homens no último dia». Os escritos sagrados
do Islão conservam parte dos ensinamentos cristãos; Jesus Cristo e Maria são
objecto de profunda veneração e é admirável ver como jovens e idosos, mulheres
e homens do Islão são capazes de dedicar diariamente tempo à oração e
participar fielmente nos seus ritos religiosos. Ao mesmo tempo, muitos deles
têm uma profunda convicção de que a própria vida, na sua totalidade, é de Deus
e para Deus. Reconhecem também a necessidade de Lhe responder com um
compromisso ético e com a misericórdia para com os mais pobres.
253. Para sustentar o diálogo com
o Islão é indispensável a adequada formação dos interlocutores, não só para que
estejam sólida e jubilosamente radicados na sua identidade, mas também para que
sejam capazes de reconhecer os valores dos outros, compreender as preocupações
que subjazem às suas reivindicações e fazer aparecer as convicções comuns. Nós,
cristãos, deveríamos acolher com afecto e respeito os imigrantes do Islão que
chegam aos nossos países, tal como esperamos e pedimos para ser acolhidos e
respeitados nos países de tradição islâmica. Rogo, imploro humildemente a esses
países que assegurem liberdade aos cristãos para poderem celebrar o seu culto e
viver a sua fé, tendo em conta a liberdade que os crentes do Islão gozam nos
países ocidentais. Frente a episódios de fundamentalismo violento que nos
preocupam, o afecto pelos verdadeiros crentes do Islão deve levar-nos a evitar
odiosas generalizações, porque o verdadeiro Islão e uma interpretação adequada
do Alcorão opõem-se a toda a violência.
254. Os não-cristãos fiéis à sua
consciência podem, por gratuita iniciativa divina, viver «justificados por meio
da graça de Deus» e, assim, «associados ao mistério pascal de Jesus Cristo».
Devido, porém, à dimensão sacramental da graça santificante, a acção divina
neles tende a produzir sinais, ritos, expressões sagradas que, por sua vez,
envolvem outros numa experiência comunitária do caminho para Deus. Não têm o
significado e a eficácia dos Sacramentos instituídos por Cristo, mas podem ser
canais que o próprio Espírito suscita para libertar os não-cristãos do
imanentismo ateu ou de experiências religiosas meramente individuais. O mesmo
Espírito suscita por toda a parte diferentes formas de sabedoria prática que
ajudam a suportar as carências da vida e a viver com mais paz e harmonia. Nós,
cristãos, podemos tirar proveito também desta riqueza consolidada ao longo dos
séculos, que nos pode ajudar a viver melhor as nossas próprias convicções.
O diálogo social num contexto de
liberdade religiosa
255. Os Padres sinodais lembraram
a importância do respeito pela liberdade religiosa, considerada um direito
humano fundamental. Inclui «a liberdade de escolher a religião que se crê ser verdadeira
e de manifestar publicamente a própria crença». Um são pluralismo, que respeite
verdadeiramente aqueles que pensam diferente e os valorizem como tais, não
implica uma privatização das religiões, com a pretensão de as reduzir ao
silêncio e à obscuridade da consciência de cada um ou à sua marginalização no
recinto fechado das igrejas, sinagogas ou mesquitas. Tratar-se-ia, em
definitivo, de uma nova forma de discriminação e autoritarismo. O respeito
devido às minorias de agnósticos ou de não-crentes não se deve impor de maneira
arbitrária que silencie as convicções de maiorias crentes ou ignore a riqueza
das tradições religiosas. No fundo, isso fomentaria mais o ressentimento do que
a tolerância e a paz.
256. Ao questionar-se sobre a
incidência pública da religião, é preciso distinguir diferentes modos de a
viver. Tanto os intelectuais como os jornalistas caem, frequentemente, em
generalizações grosseiras e pouco académicas, quando falam dos defeitos das
religiões e, muitas vezes, não são capazes de distinguir que nem todos os
crentes – nem todos os líderes religiosos – são iguais. Alguns políticos
aproveitam esta confusão para justificar acções discriminatórias. Outras vezes,
desprezam-se os escritos que surgiram no âmbito duma convicção crente, esquecendo
que os textos religiosos clássicos podem oferecer um significado para todas as
épocas, possuem uma força motivadora que abre sempre novos horizontes, estimula
o pensamento, engrandece a mente e a sensibilidade. São desprezados pela miopia
dos racionalismos. Será razoável e inteligente relegá-los para a obscuridade,
só porque nasceram no contexto duma crença religiosa? Contêm princípios
profundamente humanistas que possuem um valor racional, apesar de estarem
permeados de símbolos e doutrinas religiosos.
257. Como crentes, sentimo-nos
próximo também de todos aqueles que, não se reconhecendo parte de qualquer
tradição religiosa, buscam sinceramente a verdade, a bondade e a beleza, que,
para nós, têm a sua máxima expressão e a sua fonte em Deus. Sentimo-los como
preciosos aliados no compromisso pela defesa da dignidade humana, na construção
duma convivência pacífica entre os povos e na guarda da criação. Um espaço
peculiar é o dos chamados novos Areópagos, como o «Átrio dos Gentios», onde
«crentes e não-crentes podem dialogar sobre os temas fundamentais da ética, da
arte e da ciência, e sobre a busca da transcendência». Também este é um caminho
de paz para o nosso mundo ferido.
258. A partir de alguns temas
sociais, importantes para o futuro da humanidade, procurei explicitar uma vez
mais a incontornável dimensão social do anúncio do Evangelho, para encorajar
todos os cristãos a manifestá-la sempre nas suas palavras, atitudes e acções.
Capítulo V - EVANGELIZADORES COM
ESPÍRITO
259. Evangelizadores com espírito
quer dizer evangelizadores que se abrem sem medo à acção do Espírito Santo. No
Pentecostes, o Espírito faz os Apóstolos saírem de si mesmos e transforma-os em
anunciadores das maravilhas de Deus, que cada um começa a entender na própria
língua. Além disso, o Espírito Santo infunde a força para anunciar a novidade
do Evangelho com ousadia (parresia), em voz alta e em todo o tempo e lugar,
mesmo contra-corrente. Invoquemo-Lo hoje, bem apoiados na oração, sem a qual
toda a acção corre o risco de ficar vã e o anúncio, no fim de contas, carece de
alma. Jesus quer evangelizadores que anunciem a Boa Nova, não só com palavras
mas sobretudo com uma vida transfigurada pela presença de Deus.
260. Neste último capítulo, não
vou oferecer uma síntese da espiritualidade cristã, nem desenvolverei grandes
temas como a oração, a adoração eucarística ou a celebração da fé, sobre os
quais já possuímos preciosos textos do Magistério e escritos célebres de
grandes autores. Não pretendo substituir nem superar tanta riqueza. Limitar-me-ei
simplesmente a propor algumas reflexões acerca do espírito da nova
evangelização.
261. Quando se diz de uma
realidade que tem «espírito», indica-se habitualmente uma moção interior que
impele, motiva, encoraja e dá sentido à acção pessoal e comunitária. Uma
evangelização com espírito é muito diferente de um conjunto de tarefas vividas
como uma obrigação pesada, que quase não se tolera ou se suporta como algo que
contradiz as nossas próprias inclinações e desejos. Como gostaria de encontrar
palavras para encorajar uma estação evangelizadora mais ardorosa, alegre,
generosa, ousada, cheia de amor até ao fim e feita de vida contagiante! Mas sei
que nenhuma motivação será suficiente, se não arde nos corações o fogo do
Espírito. Em suma, uma evangelização com espírito é uma evangelização com o
Espírito Santo, já que Ele é a alma da Igreja evangelizadora. Antes de propor
algumas motivações e sugestões espirituais, invoco uma vez mais o Espírito
Santo; peço-Lhe que venha renovar, sacudir, impelir a Igreja numa decidida
saída para fora de si mesma a fim de evangelizar todos os povos.
1. Motivações para um renovado
impulso missionário
262. Evangelizadores com espírito
quer dizer evangelizadores que rezam e trabalham. Do ponto de vista da
evangelização, não servem as propostas místicas desprovidas de um vigoroso
compromisso social e missionário, nem os discursos e acções sociais e pastorais
sem uma espiritualidade que transforme o coração. Estas propostas parciais e
desagregadoras alcançam só pequenos grupos e não têm força de ampla penetração,
porque mutilam o Evangelho. É preciso cultivar sempre um espaço interior que dê
sentido cristão ao compromisso e à actividade. Sem momentos prolongados de
adoração, de encontro orante com a Palavra, de diálogo sincero com o Senhor, as
tarefas facilmente se esvaziam de significado, quebrantamo-nos com o cansaço e
as dificuldades, e o ardor apaga-se. A Igreja não pode dispensar o pulmão da
oração, e alegra-me imenso que se multipliquem, em todas as instituições
eclesiais, os grupos de oração, de intercessão, de leitura orante da Palavra,
as adorações perpétuas da Eucaristia. Ao mesmo tempo, «há que rejeitar a
tentação duma espiritualidade intimista e individualista, que dificilmente se
coaduna com as exigências da caridade, com a lógica da encarnação». Há o risco
de que alguns momentos de oração se tornem uma desculpa para evitar de dedicar
a vida à missão, porque a privatização do estilo de vida pode levar os cristãos
a refugiarem-se nalguma falsa espiritualidade.
263. É salutar recordar-se dos
primeiros cristãos e de tantos irmãos ao longo da história que se mantiveram
transbordantes de alegria, cheios de coragem, incansáveis no anúncio e capazes
de uma grande resistência activa. Há quem se console, dizendo que hoje é mais difícil;
temos, porém, de reconhecer que o contexto do Império Romano não era favorável
ao anúncio do Evangelho, nem à luta pela justiça, nem à defesa da dignidade
humana. Em cada momento da história, estão presentes a fraqueza humana, a busca
doentia de si mesmo, a comodidade egoísta e, enfim, a concupiscência que nos
ameaça a todos. Isto está sempre presente, sob uma roupagem ou outra; deriva
mais da limitação humana que das circunstâncias. Por isso, não digamos que hoje
é mais difícil; é diferente. Em vez disso, aprendamos com os Santos que nos
precederam e enfrentaram as dificuldades próprias do seu tempo. Com esta
finalidade, proponho-vos que nos detenhamos a recuperar algumas motivações que
nos ajudem a imitá-los nos nossos dias.
O encontro pessoal com o amor de
Jesus que nos salva
264. A primeira motivação para
evangelizar é o amor que recebemos de Jesus, aquela experiência de sermos
salvos por Ele que nos impele a amá-Lo cada vez mais. Com efeito, um amor que
não sentisse a necessidade de falar da pessoa amada, de a apresentar, de a
tornar conhecida, que amor seria? Se não sentimos o desejo intenso de comunicar
Jesus, precisamos de nos deter em oração para Lhe pedir que volte a
cativar-nos. Precisamos de o implorar cada dia, pedir a sua graça para que abra
o nosso coração frio e sacuda a nossa vida tíbia e superficial. Colocados
diante d’Ele com o coração aberto, deixando que Ele nos olhe, reconhecemos
aquele olhar de amor que descobriu Natanael no dia em que Jesus Se fez presente
e lhe disse: «Eu vi-te, quando estavas debaixo da figueira!» (Jo 1, 48). Como é
doce permanecer diante dum crucifixo ou de joelhos diante do Santíssimo
Sacramento, e fazê-lo simplesmente para estar à frente dos seus olhos! Como nos
faz bem deixar que Ele volte a tocar a nossa vida e nos envie para comunicar a
sua vida nova! Sucede então que, em última análise, «o que nós vimos e ouvimos,
isso anunciamos» (1 Jo 1, 3). A melhor motivação para se decidir a comunicar o
Evangelho é contemplá-lo com amor, é deter-se nas suas páginas e lê-lo com o
coração. Se o abordamos desta maneira, a sua beleza deslumbra-nos, volta a
cativar-nos vezes sem conta. Por isso, é urgente recuperar um espírito
contemplativo, que nos permita redescobrir, cada dia, que somos depositários
dum bem que humaniza, que ajuda a levar uma vida nova. Não há nada de melhor
para transmitir aos outros.
265. Toda a vida de Jesus, a sua
forma de tratar os pobres, os seus gestos, a sua coerência, a sua generosidade
simples e quotidiana e, finalmente, a sua total dedicação, tudo é precioso e
fala à nossa vida pessoal. Todas as vezes que alguém volta a descobri-lo,
convence-se de que é isso mesmo o que os outros precisam, embora não o saibam:
«Aquele que venerais sem O conhecer, é Esse que eu vos anuncio» (Act 17, 23).
Às vezes perdemos o entusiasmo pela missão, porque esquecemos que o Evangelho
dá resposta às necessidades mais profundas das pessoas, porque todos fomos
criados para aquilo que o Evangelho nos propõe: a amizade com Jesus e o amor
fraterno. Quando se consegue exprimir, de forma adequada e bela, o conteúdo
essencial do Evangelho, de certeza que essa mensagem fala aos anseios mais
profundos do coração: «O missionário está convencido de que existe já, nas
pessoas e nos povos, pela acção do Espírito, uma ânsia – mesmo se inconsciente
– de conhecer a verdade acerca de Deus, do homem, do caminho que conduz à
liberação do pecado e da morte. O entusiasmo posto no anúncio de Cristo deriva
da convicção de responder a tal ânsia».
O entusiasmo na evangelização
funda-se nesta convicção. Temos à disposição um tesouro de vida e de amor que
não pode enganar, a mensagem que não pode manipular nem desiludir. É uma
resposta que desce ao mais fundo do ser humano e pode sustentá-lo e elevá-lo. É
a verdade que não passa de moda, porque é capaz de penetrar onde nada mais pode
chegar. A nossa tristeza infinita só se cura com um amor infinito.
266. Esta convicção, porém, é
sustentada com a experiência pessoal, constantemente renovada, de saborear a
sua amizade e a sua mensagem. Não se pode perseverar numa evangelização cheia
de ardor, se não se está convencido, por experiência própria, que não é a mesma
coisa ter conhecido Jesus ou não O conhecer, não é a mesma coisa caminhar com
Ele ou caminhar tacteando, não é a mesma coisa poder escutá-Lo ou ignorar a sua
Palavra, não é a mesma coisa poder contemplá-Lo, adorá-Lo, descansar n’Ele ou
não o poder fazer. Não é a mesma coisa procurar construir o mundo com o seu
Evangelho em vez de o fazer unicamente com a própria razão. Sabemos bem que a
vida com Jesus se torna muito mais plena e, com Ele, é mais fácil encontrar o
sentido para cada coisa. É por isso que evangelizamos. O verdadeiro
missionário, que não deixa jamais de ser discípulo, sabe que Jesus caminha com
ele, fala com ele, respira com ele, trabalha com ele. Sente Jesus vivo com ele,
no meio da tarefa missionária. Se uma pessoa não O descobre presente no coração
mesmo da entrega missionária, depressa perde o entusiasmo e deixa de estar
seguro do que transmite, faltam-lhe força e paixão. E uma pessoa que não está
convencida, entusiasmada, segura, enamorada, não convence ninguém.
267. Unidos a Jesus, procuramos o
que Ele procura, amamos o que Ele ama. Em última instância, o que procuramos é
a glória do Pai, vivemos e agimos «para que seja prestado louvor à glória da
sua graça» (Ef 1, 6). Se queremos entregar-nos a sério e com perseverança, esta
motivação deve superar toda e qualquer outra. O movente definitivo, o mais
profundo, o maior, a razão e o sentido último de tudo o resto é este: a glória
do Pai que Jesus procurou durante toda a sua existência. Ele é o Filho
eternamente feliz, com todo o seu ser «no seio do Pai» (Jo 1, 18). Se somos
missionários, antes de tudo é porque Jesus nos disse: «A glória do meu Pai
[consiste] em que deis muito fruto» (Jo 15, 8). Independentemente de que nos
convenha, interesse, aproveite ou não, para além dos estreitos limites dos
nossos desejos, da nossa compreensão e das nossas motivações, evangelizamos
para a maior glória do Pai que nos ama.
O prazer espiritual de ser povo
268. A Palavra de Deus
convida-nos também a reconhecer que somos povo: «Vós que outrora não éreis um
povo, agora sois povo de Deus» (1 Pd 2, 10). Para ser evangelizadores com
espírito é preciso também desenvolver o prazer espiritual de estar próximo da
vida das pessoas, até chegar a descobrir que isto se torna fonte duma alegria
superior. A missão é uma paixão por Jesus, e simultaneamente uma paixão pelo
seu povo. Quando paramos diante de Jesus crucificado, reconhecemos todo o seu
amor que nos dignifica e sustenta, mas lá também, se não formos cegos,
começamos a perceber que este olhar de Jesus se alonga e dirige, cheio de
afecto e ardor, a todo o seu povo. Lá descobrimos novamente que Ele quer
servir-Se de nós para chegar cada vez mais perto do seu povo amado. Toma-nos do
meio do povo e envia-nos ao povo, de tal modo que a nossa identidade não se
compreende sem esta pertença.
269. O próprio Jesus é o modelo
desta opção evangelizadora que nos introduz no coração do povo. Como nos faz
bem vê-Lo perto de todos! Se falava com alguém, fitava os seus olhos com uma
profunda solicitude cheia de amor: «Jesus, fitando nele o olhar, sentiu afeição
por ele» (Mc 10, 21). Vemo-Lo disponível ao encontro, quando manda aproximar-se
o cego do caminho (cf. Mc 10, 46-52) e quando come e bebe com os pecadores (cf.
Mc 2, 16), sem Se importar que O chamem de glutão e beberrão (cf. Mt 11, 19).
Vemo-Lo disponível, quando deixa uma prostituta ungir-Lhe os pés (cf. Lc 7,
36-50) ou quando recebe, de noite, Nicodemos (cf. Jo 3, 1-21). A entrega de
Jesus na cruz é apenas o culminar deste estilo que marcou toda a sua vida.
Fascinados por este modelo, queremos inserir-nos a fundo na sociedade,
partilhamos a vida com todos, ouvimos as suas preocupações, colaboramos
material e espiritualmente nas suas necessidades, alegramo-nos com os que estão
alegres, choramos com os que choram e comprometemo-nos na construção de um
mundo novo, lado a lado com os outros. Mas não por obrigação, nem como um peso
que nos desgasta, mas como uma opção pessoal que nos enche de alegria e nos dá
uma identidade.
270. Às vezes sentimos a tentação
de ser cristãos, mantendo uma prudente distância das chagas do Senhor. Mas
Jesus quer que toquemos a miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos
outros. Espera que renunciemos a procurar aqueles abrigos pessoais ou
comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do drama humano, a fim
de aceitarmos verdadeiramente entrar em contacto com a vida concreta dos outros
e conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos, a vida complica-se sempre
maravilhosamente e vivemos a intensa experiência de ser povo, a experiência de
pertencer a um povo.
271. É verdade que, na nossa
relação com o mundo, somos convidados a dar razão da nossa esperança, mas não
como inimigos que apontam o dedo e condenam. A advertência é muito clara:
fazei-o «com mansidão e respeito» (1 Pd 3, 16) e «tanto quanto for possível e
de vós dependa, vivei em paz com todos os homens» (Rm 12, 18). E somos
incentivados também a vencer «o mal com o bem» (Rm 12, 21), sem nos cansarmos
de «fazer o bem» (Gal 6, 9) e sem pretendermos aparecer como superiores, antes
«considerai os outros superiores a vós próprios» (Fl 2, 3). Na realidade, os
Apóstolos do Senhor «tinham a simpatia de todo o povo» (Act 2, 47; cf. 4,
21.33; 5, 13). Está claro que Jesus não nos quer como príncipes que olham
desdenhosamente, mas como homens e mulheres do povo. Esta não é a opinião de um
Papa, nem uma opção pastoral entre várias possíveis; são indicações da Palavra
de Deus tão claras, directas e contundentes, que não precisam de interpretações
que as despojariam da sua força interpeladora. Vivamo-las sine glossa, sem
comentários. Assim, experimentaremos a alegria missionária de partilhar a vida
com o povo fiel de Deus, procurando acender o fogo no coração do mundo.
272. O amor às pessoas é uma
força espiritual que favorece o encontro em plenitude com Deus, a ponto de se
dizer, de quem não ama o irmão, que «está nas trevas e nas trevas caminha» (1
Jo 2, 11), «permanece na morte» (1 Jo 3, 14) e «não chegou a conhecer a Deus»
(1 Jo 4, 8). Bento XVI disse que «fechar os olhos diante do próximo torna cegos
também diante de Deus», e que o amor é fundamentalmente a única luz que
«ilumina incessantemente um mundo às escuras e nos dá a coragem de viver e
agir». Portanto, quando vivemos a mística de nos aproximar dos outros com a
intenção de procurar o seu bem, ampliamos o nosso interior para receber os mais
belos dons do Senhor. Cada vez que nos encontramos com um ser humano no amor,
ficamos capazes de descobrir algo de novo sobre Deus. Cada vez que os nossos
olhos se abrem para reconhecer o outro, ilumina-se mais a nossa fé para
reconhecer a Deus. Em consequência disto, se queremos crescer na vida
espiritual, não podemos renunciar a ser missionários. A tarefa da evangelização
enriquece a mente e o coração, abre-nos horizontes espirituais, torna-nos mais
sensíveis para reconhecer a acção do Espírito, faz-nos sair dos nossos esquemas
espirituais limitados. Ao mesmo tempo, um missionário plenamente devotado ao
seu trabalho experimenta o prazer de ser um manancial que transborda e refresca
os outros. Só pode ser missionário quem se sente bem procurando o bem do
próximo, desejando a felicidade dos outros. Esta abertura do coração é fonte de
felicidade, porque «a felicidade está mais em dar do que em receber» (Act 20,
35). Não se vive melhor fugindo dos outros, escondendo-se, negando-se a
partilhar, resistindo a dar, fechando-se na comodidade. Isto não é senão um
lento suicídio.
273. A missão no coração do povo
não é uma parte da minha vida, ou um ornamento que posso pôr de lado; não é um
apêndice ou um momento entre tantos outros da minha vida. É algo que não posso
arrancar do meu ser, se não me quero destruir. Eu sou uma missão nesta terra, e
para isso estou neste mundo. É preciso considerarmo-nos como que marcados a
fogo por esta missão de iluminar, abençoar, vivificar, levantar, curar,
libertar. Nisto se revela a enfermeira autêntica , o professor autêntico, o
político autêntico, aqueles que decidiram, no mais íntimo do seu ser, estar com
os outros e ser para os outros. Mas, se uma pessoa coloca a tarefa dum lado e a
vida privada do outro, tudo se torna cinzento e viverá continuamente à procura
de reconhecimentos ou defendendo as suas próprias exigências. Deixará de ser
povo.
274. Para partilhar a vida com a
gente e dar-nos generosamente, precisamos de reconhecer também que cada pessoa
é digna da nossa dedicação. E não pelo seu aspecto físico, suas capacidades,
sua linguagem, sua mentalidade ou pelas satisfações que nos pode dar, mas
porque é obra de Deus, criatura sua. Ele criou-a à sua imagem, e reflecte algo
da sua glória. Cada ser humano é objecto da ternura infinita do Senhor, e Ele
mesmo habita na sua vida. Na cruz, Jesus Cristo deu o seu sangue precioso por
essa pessoa. Independentemente da aparência, cada um é imensamente sagrado e
merece o nosso afecto e a nossa dedicação. Por isso, se consigo ajudar uma só
pessoa a viver melhor, isso já justifica o dom da minha vida. É maravilhoso ser
povo fiel de Deus. E ganhamos plenitude, quando derrubamos os muros e o coração
se enche de rostos e de nomes!
A ação misteriosa do Ressuscitado
e do seu Espírito
275. No terceiro capítulo,
reflectimos sobre a carência de espiritualidade profunda que se traduz no
pessimismo, no fatalismo, na desconfiança. Algumas pessoas não se dedicam à
missão, porque crêem que nada pode mudar e assim, segundo elas, é inútil
esforçar-se. Pensam: «Para quê privar-me das minhas comodidades e prazeres, se
não vejo algum resultado importante?» Com esta mentalidade, torna-se impossível
ser missionário. Esta atitude é precisamente uma desculpa maligna para
continuar fechado na própria comodidade, na preguiça, na tristeza insatisfeita,
no vazio egoísta. Trata-se de uma atitude autodestrutiva, porque «o homem não
pode viver sem esperança: a sua vida, condenada à insignificância, tornar-se-ia
insuportável». No caso de pensarmos que as coisas não vão mudar, recordemos que
Jesus Cristo triunfou sobre o pecado e a morte e possui todo o poder. Jesus Cristo
vive verdadeiramente. Caso contrário, «se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa
pregação» (1 Cor 15, 14). Diz-nos o Evangelho que, quando os primeiros
discípulos saíram a pregar, «o Senhor cooperava com eles, confirmando a
Palavra» (Mc 16, 20). E o mesmo acontece hoje. Somos convidados a descobri-lo,
a vivê-lo. Cristo ressuscitado e glorioso é a fonte profunda da nossa
esperança, e não nos faltará a sua ajuda para cumprir a missão que nos confia.
276. A sua ressurreição não é
algo do passado; contém uma força de vida que penetrou o mundo. Onde parecia
que tudo morreu, voltam a aparecer por todo o lado os rebentos da ressurreição.
É uma força sem igual. É verdade que muitas vezes parece que Deus não existe:
vemos injustiças, maldades, indiferenças e crueldades que não cedem. Mas também
é certo que, no meio da obscuridade, sempre começa a desabrochar algo de novo
que, mais cedo ou mais tarde, produz fruto. Num campo arrasado, volta a
aparecer a vida, tenaz e invencível. Haverá muitas coisas más, mas o bem sempre
tende a reaparecer e espalhar-se. Cada dia, no mundo, renasce a beleza, que
ressuscita transformada através dos dramas da história. Os valores tendem
sempre a reaparecer sob novas formas, e na realidade o ser humano renasceu
muitas vezes de situações que pareciam irreversíveis. Esta é a força da
ressurreição, e cada evangelizador é um instrumento deste dinamismo.
277. E continuamente aparecem
também novas dificuldades, a experiência do fracasso, as mesquinhices humanas
que tanto ferem. Todos sabemos, por experiência, que às vezes uma tarefa não
nos dá as satisfações que desejaríamos, os frutos são escassos e as mudanças
são lentas, e vem-nos a tentação de se dar por cansado. Todavia, não é a mesma
coisa quando alguém, por cansaço, baixa momentaneamente os braços e quando os
baixa definitivamente dominado por um descontentamento crónico, por uma acédia
que lhe mirra a alma. Pode acontecer que o coração se canse de lutar, porque,
em última análise, se busca a si mesmo num carreirismo sedento de reconhecimentos,
aplausos, prémios, promoções; então a pessoa não baixa os braços, mas já não
tem garra, carece de ressurreição. Assim, o Evangelho, que é a mensagem mais
bela que há neste mundo, fica sepultado sob muitas desculpas.
278. A fé significa também acreditar
n’Ele, acreditar que nos ama verdadeiramente, que está vivo, que é capaz de
intervir misteriosamente, que não nos abandona, que tira bem do mal com o seu
poder e a sua criatividade infinita. Significa acreditar que Ele caminha
vitorioso na história «e, com Ele, estarão os chamados, os escolhidos, os
fiéis» (Ap 17, 14). Acreditamos no Evangelho que diz que o Reino de Deus já
está presente no mundo, e vai-se desenvolvendo-se aqui e além de várias
maneiras: como a pequena semente que pode chegar a transformar-se numa grande
árvore (cf. Mt 13, 31-32), como o punhado de fermento que leveda uma grande
massa (cf. Mt 13, 33), e como a boa semente que cresce no meio do joio (cf. Mt
13, 24-30) e sempre nos pode surpreender positivamente: ei-la que aparece, vem outra
vez, luta para florescer de novo. A ressurreição de Cristo produz por toda a
parte rebentos deste mundo novo; e, ainda que os cortem, voltam a despontar,
porque a ressurreição do Senhor já penetrou a trama oculta desta história;
porque Jesus não ressuscitou em vão. Não fiquemos à margem desta marcha da
esperança viva!
279. Como nem sempre vemos estes
rebentos, precisamos de uma certeza interior, ou seja, da convicção de que Deus
pode actuar em qualquer circunstância, mesmo no meio de aparentes fracassos,
porque «trazemos este tesouro em vasos de barro» (2 Cor 4, 7). Esta certeza é o
que se chama «sentido de mistério», que consiste em saber, com certeza, que a
pessoa que se oferece e entrega a Deus por amor, seguramente será fecunda (cf.
Jo 15, 5). Muitas vezes esta fecundidade é invisível, incontrolável, não pode
ser contabilizada. A pessoa sabe com certeza que a sua vida dará frutos, mas
sem pretender conhecer como, onde ou quando; está segura de que não se perde
nenhuma das suas obras feitas com amor, não se perde nenhuma das suas
preocupações sinceras com os outros, não se perde nenhum acto de amor a Deus,
não se perde nenhuma das suas generosas fadigas, não se perde nenhuma dolorosa
paciência. Tudo isto circula pelo mundo como uma força de vida. Às vezes
invade-nos a sensação de não termos obtido resultado algum com os nossos
esforços, mas a missão não é um negócio nem um projecto empresarial, nem mesmo
uma organização humanitária, não é um espectáculo para que se possa contar
quantas pessoas assistiram devido à nossa propaganda. É algo de muito mais
profundo, que escapa a toda e qualquer medida. Talvez o Senhor Se sirva da
nossa entrega para derramar bênçãos noutro lugar do mundo, aonde nunca iremos.
O Espírito Santo trabalha como quer, quando quer e onde quer; e nós gastamo-nos
com grande dedicação, mas sem pretender ver resultados espectaculares. Sabemos
apenas que o dom de nós mesmos é necessário. No meio da nossa entrega criativa
e generosa, aprendamos a descansar na ternura dos braços do Pai. Continuemos
para diante, empenhemo-nos totalmente, mas deixemos que seja Ele a tornar
fecundos, como melhor Lhe parecer, os nossos esforços.
280. Para manter vivo o ardor
missionário, é necessária uma decidida confiança no Espírito Santo, porque Ele
«vem em auxílio da nossa fraqueza» (Rm 8, 26). Mas esta confiança generosa tem
de ser alimentada e, para isso, precisamos de O invocar constantemente. Ele
pode curar-nos de tudo o que nos faz esmorecer no compromisso missionário. É
verdade que esta confiança no invisível pode causar-nos alguma vertigem: é como
mergulhar num mar onde não sabemos o que vamos encontrar. Eu mesmo o
experimentei tantas vezes. Mas não há maior liberdade do que a de se deixar
conduzir pelo Espírito, renunciando a calcular e controlar tudo e permitindo
que Ele nos ilumine, guie, dirija e impulsione para onde Ele quiser. O Espírito
Santo bem sabe o que faz falta em cada época e em cada momento. A isto chama-se
ser misteriosamente fecundos!
A força missionária da
intercessão
281. Há uma forma de oração que
nos incentiva particularmente a gastarmo-nos na evangelização e nos motiva a
procurar o bem dos outros: é a intercessão. Fixemos, por momentos, o íntimo dum
grande evangelizador como São Paulo, para perceber como era a sua oração. Esta
estava repleta de seres humanos: «Em todas as minhas orações, sempre peço com
alegria por todos vós (...), pois tenho-vos no coração» (Fl 1, 4.7).
Descobrimos, assim, que interceder não nos afasta da verdadeira contemplação,
porque a contemplação que deixa de fora os outros é uma farsa.
282. Esta atitude transforma-se
também num agradecimento a Deus pelos outros. «Antes de mais, dou graças ao meu
Deus por todos vós, por meio de Jesus Cristo» (Rm 1, 8). Trata-se de um
agradecimento constante: «Dou incessantemente graças ao meu Deus por vós, pela
graça de Deus que vos foi concedida em Cristo Jesus» (1 Cor 1, 4); «todas as
vezes que me lembro de vós, dou graças ao meu Deus» (Fl 1, 3). Não é um olhar
incrédulo, negativo e sem esperança, mas uma visão espiritual, de fé profunda,
que reconhece aquilo que o próprio Deus faz neles. E, simultaneamente, é a
gratidão que brota de um coração verdadeiramente solícito pelos outros. Deste
modo, quando um evangelizador sai da oração, o seu coração tornou-se mais
generoso, libertou-se da consciência isolada e está ansioso por fazer o bem e
partilhar a vida com os outros.
283. Os grandes homens e mulheres
de Deus foram grandes intercessores. A intercessão é como «fermento» no seio da
Santíssima Trindade. É penetrarmos no Pai e descobrirmos novas dimensões que
iluminam as situações concretas e as mudam. Poderíamos dizer que o coração de
Deus se deixa comover pela intercessão, mas na realidade Ele sempre nos
antecipa, pelo que, com a nossa intercessão, apenas possibilitamos que o seu poder,
o seu amor e a sua lealdade se manifestem mais claramente no povo.
2. Maria, a Mãe da evangelização
284. Juntamente com o Espírito
Santo, sempre está Maria no meio do povo. Ela reunia os discípulos para O
invocarem (Act 1, 14), e assim tornou possível a explosão missionária que se
deu no Pentecostes. Ela é a Mãe da Igreja evangelizadora e, sem Ela, não
podemos compreender cabalmente o espírito da nova evangelização.
O dom de Jesus ao seu povo
285. Na cruz, quando Cristo
suportava em sua carne o dramático encontro entre o pecado do mundo e a
misericórdia divina, pôde ver a seus pés a presença consoladora da Mãe e do
amigo. Naquele momento crucial, antes de declarar consumada a obra que o Pai
Lhe havia confiado, Jesus disse a Maria: «Mulher, eis o teu filho!» E, logo a
seguir, disse ao amigo bem-amado: «Eis a tua mãe!» (Jo 19, 26-27). Estas
palavras de Jesus, no limiar da morte, não exprimem primariamente uma terna
preocupação por sua Mãe; mas são, antes, uma fórmula de revelação que manifesta
o mistério duma missão salvífica especial. Jesus deixava-nos a sua Mãe como
nossa Mãe. E só depois de fazer isto é que Jesus pôde sentir que «tudo se
consumara» (Jo 19, 28). Ao pé da cruz, na hora suprema da nova criação, Cristo
conduz-nos a Maria; conduz-nos a Ela, porque não quer que caminhemos sem uma
mãe; e, nesta imagem materna, o povo lê todos os mistérios do Evangelho. Não é
do agrado do Senhor que falte à sua Igreja o ícone feminino. Ela, que O gerou
com tanta fé, também acompanha «o resto da sua descendência, isto é, os que
observam os mandamentos de Deus e guardam o testemunho de Jesus» (Ap 12, 17).
Esta ligação íntima entre Maria, a Igreja e cada fiel, enquanto de maneira
diversa geram Cristo, foi maravilhosamente expressa pelo Beato Isaac da
Estrela: «Nas Escrituras divinamente inspiradas, o que se atribui em geral à
Igreja, Virgem e Mãe, aplica-se em especial à Virgem Maria (...). Alem disso,
cada alma fiel é igualmente, a seu modo, esposa do Verbo de Deus, mãe de
Cristo, filha e irmã, virgem e mãe fecunda. (...) No tabernáculo do ventre de
Maria, Cristo habitou durante nove meses; no tabernáculo da fé da Igreja,
permanecerá até ao fim do mundo; no conhecimento e amor da alma fiel habitará
pelos séculos dos séculos».
286. Maria é aquela que sabe
transformar um curral de animais na casa de Jesus, com uns pobres paninhos e
uma montanha de ternura. Ela é a serva humilde do Pai, que transborda de
alegria no louvor. É a amiga sempre solícita para que não falte o vinho na
nossa vida. É aquela que tem o coração trespassado pela espada, que compreende
todas as penas. Como Mãe de todos, é sinal de esperança para os povos que
sofrem as dores do parto até que germine a justiça. Ela é a missionária que Se
aproxima de nós, para nos acompanhar ao longo da vida, abrindo os corações à fé
com o seu afecto materno. Como uma verdadeira mãe, caminha connosco, luta
connosco e aproxima-nos incessantemente do amor de Deus. Através dos diferentes
títulos marianos, geralmente ligados aos santuários, compartilha as
vicissitudes de cada povo que recebeu o Evangelho e entra a formar parte da sua
identidade histórica. Muitos pais cristãos pedem o Baptismo para seus filhos
num santuário mariano, manifestando assim a fé na acção materna de Maria que
gera novos filhos para Deus. É lá, nos santuários, que se pode observar como
Maria reúne ao seu redor os filhos que, com grandes sacrifícios, vêm peregrinos
para A ver e deixar-se olhar por Ela. Lá encontram a força de Deus para
suportar os sofrimentos e as fadigas da vida. Como a São João Diego, Maria
oferece-lhes a carícia da sua consolação materna e diz-lhes: «Não se perturbe o
teu coração. (...) Não estou aqui eu, que sou tua Mãe?»
A Estrela da nova evangelização
287. À Mãe do Evangelho vivente,
pedimos a sua intercessão a fim de que este convite para uma nova etapa da
evangelização seja acolhido por toda a comunidade eclesial. Ela é a mulher de
fé, que vive e caminha na fé, e «a sua excepcional peregrinação da fé
representa um ponto de referência constante para a Igreja». Ela deixou-Se
conduzir pelo Espírito, através dum itinerário de fé, rumo a uma destinação
feita de serviço e fecundidade. Hoje fixamos n’Ela o olhar, para que nos ajude
a anunciar a todos a mensagem de salvação e para que os novos discípulos se
tornem operosos evangelizadores. Nesta peregrinação evangelizadora, não faltam
as fases de aridez, de ocultação e até de um certo cansaço, como as que viveu
Maria nos anos de Nazaré enquanto Jesus crescia: «Este é o início do Evangelho,
isto é, da boa nova, da jubilosa nova. Não é difícil, porém, perceber naquele
início um particular aperto do coração, unido a uma espécie de “noite da fé” –
para usar as palavras de São João da Cruz – como que um “véu” através do qual é
forçoso aproximar-se do Invisível e viver na intimidade com o mistério. Foi
deste modo efectivamente que Maria, durante muitos anos, permaneceu na
intimidade com o mistério do seu Filho, e avançou no seu itinerário de fé».
288. Há um estilo mariano na
actividade evangelizadora da Igreja. Porque sempre que olhamos para Maria, voltamos
a acreditar na força revolucionária da ternura e do afecto. N’Ela, vemos que a
humildade e a ternura não são virtudes dos fracos, mas dos fortes, que não
precisam de maltratar os outros para se sentir importantes. Fixando-A,
descobrimos que aquela que louvava a Deus porque «derrubou os poderosos de seus
tronos» e «aos ricos despediu de mãos vazias» (Lc 1, 52.53) é mesma que
assegura o aconchego dum lar à nossa busca de justiça. E é a mesma também que
conserva cuidadosamente «todas estas coisas ponderando-as no seu coração» (Lc
2, 19). Maria sabe reconhecer os vestígios do Espírito de Deus tanto nos
grandes acontecimentos como naqueles que parecem imperceptíveis. É
contemplativa do mistério de Deus no mundo, na história e na vida diária de
cada um e de todos. É a mulher orante e trabalhadora em Nazaré, mas é também
nossa Senhora da prontidão, a que sai «à pressa» (Lc 1, 39) da sua povoação
para ir ajudar os outros. Esta dinâmica de justiça e ternura, de contemplação e
de caminho para os outros faz d’Ela um modelo eclesial para a evangelização.
Pedimos-Lhe que nos ajude, com a sua oração materna, para que a Igreja se torne
uma casa para muitos, uma mãe para todos os povos, e torne possível o
nascimento dum mundo novo. É o Ressuscitado que nos diz, com uma força que nos
enche de imensa confiança e firmíssima esperança: «Eu renovo todas as coisas»
(Ap 21, 5). Com Maria, avançamos confiantes para esta promessa, e dizemos-Lhe:
Virgem e Mãe Maria,
Vós que, movida pelo Espírito,
acolhestes o Verbo da vida
na profundidade da vossa fé
humilde,
totalmente entregue ao Eterno,
ajudai-nos a dizer o nosso «sim»
perante a urgência, mais
imperiosa do que nunca,
de fazer ressoar a Boa Nova de
Jesus.
Vós, cheia da presença de Cristo,
levastes a alegria a João o
Baptista,
fazendo-o exultar no seio de sua
mãe.
Vós, estremecendo de alegria,
cantastes as maravilhas do
Senhor.
Vós, que permanecestes firme
diante da Cruz
com uma fé inabalável,
e recebestes a jubilosa
consolação da ressurreição,
reunistes os discípulos à espera
do Espírito
para que nascesse a Igreja
evangelizadora.
Alcançai-nos agora um novo ardor
de ressuscitados
para levar a todos o Evangelho da
vida
que vence a morte.
Dai-nos a santa ousadia de buscar
novos caminhos
para que chegue a todos
o dom da beleza que não se apaga.
Vós, Virgem da escuta e da
contemplação,
Mãe do amor, esposa das núpcias
eternas
intercedei pela Igreja, da qual
sois o ícone puríssimo,
para que ela nunca se feche nem
se detenha
na sua paixão por instaurar o
Reino.
Estrela da nova evangelização,
ajudai-nos a refulgir com o
testemunho da comunhão,
do serviço, da fé ardente e
generosa,
da justiça e do amor aos pobres,
para que a alegria do Evangelho
chegue até aos confins da terra
e nenhuma periferia fique privada
da sua luz.
Mãe do Evangelho vivente,
manancial de alegria para os
pequeninos,
rogai por nós.
Amen. Aleluia!
Dado em Roma, junto de São Pedro,
no encerramento do Ano da Fé, dia 24 de Novembro – Solenidade de Nosso Senhor
Jesus Cristo, Rei do Universo – do ano de 2013, primeiro do meu Pontificado.
[Franciscus PP]
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